Incursão pelo  repertório euclidiano

 

 

Quando se aproxima agosto e com ele mais uma Semana Euclidiana, nunca deixo de me lembrar de tanta situação, geralmente boa, que vivi ao longo do tempo, para ser exato, sessenta e oito anos, desde a primeira série do curso ginasial.

Não vou falar dos desfiles de que,  como ginasiano e colegial, participei. Começo por um estranho e tardio convite que recebi, em 1949 (d.C.!), do Prof. Hersílio Ângelo, para disputar a Maratona Euclidiana pelo então Colégio Estadual e Escola Normal “Euclides da Cunha”. Ainda o vejo, nos primeiros dias de julho (isso: julho!) retirando alguns livros do porta-malas de seu carrinho inglês, à porta de minha casa, e a recomendação de que eu estudasse bastante. Não fiz feio com o segundo lugar obtido; poderia, contudo, ter estudado mais tempo. A prova está arquivada até hoje na Casa Euclidiana. O ganhador foi um simpático rapaz de Franca, por sobrenome Câmara, que veio orientado pelo famoso professor de Português de lá, Alfredo Palermo. Nunca mais vi o Câmara nem tive notícias dele

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Mas foi em 1958 ( também d.C.) que  recebi maneiroso convite de Rubens Ortiz, então diretor da Casa Euclidiana. Ele, contratado para assessorar o novo deputado Eduardo Vicente Nasser na Assembleia Legislativa, simplesmente me oferecia o próprio cargo de direção e se dispunha a conseguir rapidinho o meu comissionamento.  Assumindo a Casa, eu deixaria de viajar todos os dias para lecionar Português em Vargem Grande do Sul, o que tornava tentadora a oferta, levando-se em conta que enfrentava 70 quilômetros  e 212 curvas (contadas pelo compadre Oswaldo Della Torre Grassi) na ida e volta por estrada de terra,  nuns ônibus verde-amarelos duríssimos da Empresa Maringolo, que saíam às seis da manhã de um ponto situado atrás da Matriz de São José.

Quando aceitei a oferta de Ortiz, devia ter prestado mais atenção  à sensação de alívio que ele não pôde disfarçar, comparável talvez ao bem-estar vivido por quem descalçava uma bota apertada. E assim, aos 26 anos e recém-casado, fui diretor da Casa Euclidiana. Logo entendi como era difícil  lidar com tantos problemas e com tantas pessoas tão diferentes; como era complicado pensar ao mesmo tempo em alojar e alimentar maratonistas, hospedar professores, contratar orquestras, supervisionar programação cultural, social e esportiva, além de fazer sala a figurões e figurinhas.

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Nada, porém, naquele ano, mais avassalador do que  acordar no dia 9 de agosto e perceber, como num pesadelo, que estava chovendo! Ora, dirão, chover em agosto é quase impossível. E dirão bem: quase. Choveu mansamente durante a manhã e boa parte da tarde. Lá pelas 3 horas um ventinho brando dissipou as nuvens e o sol  se abriu. O desfile, quem sabe pela primeira e única vez, realizou-se ao fim do dia. Muita gente achou aquilo ótimo  e até sugeriu (em Semanas Euclidianas o que não falta é sugestão) que os desfiles do dia 9 fossem sempre à tarde...

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Não no mesmo ano, mas também já faz muito tempo: Jorge Luiz Abchabcki, o professor de Educação Física de todos nós, relatava ao Dr. Oswaldo Galotti como era desgastante organizar o desfile de abertura. Arrolou os muitos problemas que (todo o mundo o sabia) se repetiam ano após ano e talvez persistam até hoje.

O Dr. Galotti ouviu com seriedade todas as lamentações do amigo  e o consolou com sua fala mansa: « Mas você nem imagina, Jorgito, como fica bonito um desfile visto do palanque...»

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Tribunal de Contas já preocupava, nem tanto quanto hoje  com a espada de Dâmocles da tal lei de responsabilidade fiscal. Um dia recebi na Casa um telegrama de convocação: que fosse urgente a São Paulo prestar esclarecimentos, na Secretaria do Governo,  sobre uma conta mensal que não batia. Procedi de acordo com a praxe: requisitei cabine-leito no trem da Mojiana que passava por aqui logo depois da meia-noite; requeri diárias e fui a São Paulo  dar explicações a respeito de uma compra que, provavelmente por erro de soma, dava diferença de 50 centavos daqueles cruzeiros velhíssimos. Minha viagem deve ter custado aos cofres públicos trezentas, quatrocentas vezes o preço da inexatidão contábil e ainda me tirou o sono por muitas noites.

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Fazer sala sempre me pareceu tarefa detestável. Fazer sala a umas figurinhas encaixadas na programação da Semana Euclidiana por injunções da política local ou estadual  atingia as raias da abominação. Pois ou como diretor da Casa ou como coordenador do Ciclo de Estudos Euclidianos me prestei a esses tristes papéis. Felizmente não guardei nomes nem fisionomias. Não dá para esquecer, contudo, a postura de superioridade de um deles, encomendado sei lá por quem a dar palestra aos maratonistas. Chegou, encheu o peito e começou acacianamente a contar seu grande segredo: “Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha nasceu na Fazenda Saudade, em Santa Rita do Rio Negro, município de Cantagalo, província do Rio de Janeiro, a 20 de janeiro de 1866”... Os maratonistas eram mais pacienciosos que os de agora, mas já pegavam no sono com facilidade  nas aulas chatas e/ou desprovidas de conteúdo.

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Cléber José Ribeiro, diretor da Casa Euclidiana,  estava eufórico porque o convite fora aceito: Jarbas Passarinho, ministro da Educação, o mais prestigiado ministro  naqueles anos de chumbo, viria proferir a conferência oficial de 14 de agosto de um ano qualquer, entre fins de 60 e inícios de 70.

Dada a evidência do convidado, a Casa Euclidiana nem precisou providenciar o público meio compulsório de tantas ocasiões: colegiais trazidos sob vigilância  e maratonistas com frequência controlada à entrada e à saída. O simples anúncio da vinda de Passarinho provocou uma inflação de prefeitos, vereadores, membros da Arena 1, da Arena 2, da Arena 3, porque a vocação governista se fazia muito acentuada naqueles tempos discricionários. Pouco antes do início da conferência as centenas de cadeiras arrumadas no grande salão de baile da Associação  já estavam sendo disputadas quase no tapa.

Nunca fiquei sabendo a que horas Cléber José Ribeiro fora cientificado do cancelamento da presença ministerial. Quando ele mesmo comunicou àquele heterogêneo auditório a mancada do ministro, que nem havia saído de Brasília, nove entre dez pessoas  foram embora com caras de frustração, resmungando o tempo perdido, a oportunidade gorada.

Os que permaneceram constituiriam o público afeito a palestras e conferências. Não se arrependeram de assistir à notável preleção  que, jogado na fogueira, Carlos d’Alge, português paradoxalmente inteligentíssimo  e professor do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará, alinhavou num desses aparentes improvisos, na verdade elaborados a partir de conhecimentos muito sólidos.

Gente culta é outra coisa. Gente culta nunca improvisa: precisa apenas de um tempinho para colocar ordem nos pensamentos.

 

09/07/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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