SEM MENSALÃO, SEM CPI

             Se você não tiver força de vontade, desorganiza toda a sua vida no afã de acompanhar tudo, de tudo saber a respeito da pandemia corruptiva que se abateu sobre o Brasil. Uma noite destas, quando dei por mim, estava às três da madrugada submetido ao poder encantatório  de Roberto Jefferson, de réu confesso transformado em retórico acusador.

            Hoje quero provar ser possível falar lisamente sobre os Correios, quer rememorando coisas, quer relatando o que ainda ele presta de serviços.

            Se for começar bem atrás, posso rever o Sr. Zequinha Guimarães – baixinho, redondinho, de farda amarela e quepe – caminhando devagar, pelas cinco da tarde, para entregar aqui em casa a eventual correspondência  e o sagrado jornalDiário de São Paulo --- , que chegava de trem (menos às segundas-feiras) e era distribuído quase sempre no mesmo dia. Caso contrário, no dia seguinte, sem que isso matasse pessoa alguma.

            Nossa casa aqui na Várzea era a última incluída na entrega postal domiciliar, porque aqui também se acabava o perímetro urbano. Bem defronte à janela de meu quarto, havia uma pedra fincada no solo, ostentando numa face, insculpida, a indicação KM 0 (quilômetro zero). Dali para frente a Rua Siqueira Campos servia também como estrada, poeirenta estrada, que demandava muitos sítios, chácaras e fazendas, além de ser a saída para  Tapiratiba e Sapecado, hoje Divinolândia.

            Meu pai gostava muito de seu Zequinha, José de Sousa Guimarães,  um fluminense  sériobem conceituado, de espírito público  desenvolvido. Foi dele a iniciativa de promover subscrição popular para a construção do túmulo de Ananias Barbosa, antigo dono do Hotel Brasil e participante do Episódio Republicano Rio-Pardense, de 11 de agosto de 1889. Meio desgastado pelo tempo, mas ainda adequado, está, na avenida central do cemitério, logo à direita de quem entra, o túmulo com o retrato de Ananias e com o barrete frígio, símbolo da República – esta mesma República que nos seus cento e quinze anos alimentou sonhos e decepcionou tanta gente, desde Euclides da Cunha até os milhões de deserdados eleitores de agora.

            Não. Prometi a mim mesmo não tratar da face negra dos Correios, deste momento triste da vida nacional.

            pelos anos quarenta, havia na cidade dois carteiros: seu Zequinha, pai de minha colega de Escola Normal  --  Nazareth Guimarães, e seu Quinzinho, moreno, magro, com uns óculos de aro negro que eu relacionei muito tempo depois com os de Harold Lloyd,  comediante do cinema mudo que ainda hoje em canal retrô de TV pode ser visto segurando-se desesperadamente a um ponteiro de relógio no topo de um arranha-céu de Nova York.

            Seu Zequinha, a esposa D. Teresa (morreu há pouco tempo, com mais de cem anos), os filhos José, Fausto e Nazareth moravam numa casa situada atrás do Grupo Escolar Tarqüínio Cobra e mantiveram permanente amizade com a família Parisi, de minha mulher.

            Seu Quinzinho era solteirão e parece que com muito boa situação financeira, a ponto  de emprestar  dinheiro a juros. Morava pelos lados  da Vila Pereira.

            O Correio (Correios e Telegraphos, anunciava sua pequena placa amarela) funcionava onde hoje está a Drogaria  d’Osmar e suas instalações eram acanhadas, precárias. Lembro-me vagamente da figura elegante de seu agente, o Sr. Artur Navarro. Havia muitas caixas postais, muitos vidros de goma-arábica, barulhos de constante carimbar,   alguns funcionários para atendimento ao público, inclusive na benemérita tarefa de preencher envelopes para usuários analfabetos e de redigir telegramas, um luxo usado apenas em situações excepcionais, como felicitações por casamento (muito mais baratos do que presentinhos, e de bom-tom) ou por morte. Quando se ia passar telegrama de pêsames, evitava-se empregar esta palavramorte  -- e dependendo das circunstâncias, usava-se passamento, desenlace...

            Bem, venci metade de meu espaço no jornal  e estou resistindo à tentação de falar de mensalão, de negociatas. Prosseguirei nesta salutar postura.

            Um dia destes precisei redigir uma carta manuscrita, para atender com a necessária delicadeza a um senhor que me havia escrito para perguntar a meu respeito. Ele, aluno no Euclides da Cunha muito antigamente,  sonhara comigo (boa coisa não deve de ter sido) e se julgou na obrigação de indagar sobre meu estado de saúde. Respondi com presteza, sem me referir a nenhum achaque da idade,  mesmo porque fiquei com a impressão de ele imaginar que  eu tivesse partido desta para melhor. Mandei-lhe  também meu currículo breve, para ele ter provas do quanto tenho trabalhado.

            (Um parêntese intrigante: há uns meses, caminhando de manhã pela cidade, estava no Largo do Mercado quando ouvi o chamado de uma jovem senhora que eu conhecia apenas de vista:

            -- Professor, tenho de lhe contar um sonho que tive com o senhor.

            -- Comigo?

            -- Pois é. Eu vi nitidamente o senhor ao lado do Papa.

            -- Do Papa? Do atual Papa?

            -- Isso. De João Paulo II. Os dois estavam muito bem, sorridentes, muito à vontade. Que significaria isso?

            --  Como posso saber? Nunca fiquei à vontade nem com um bispo, imagine com um papa...

            E ficou nisso o nosso diálogo.

 Minha diligente colega de UNIP, especialista na decifração de símbolos, bem que poderia dar sua interpretação, desde que me garanta não se tratar de morte certa, logo-logo.)

            Volto à postagem da carta manuscrita.

            Se meu preocupado ex-aluno de tempos atrás  dispusesse de  um endereço eletrônico, meia hora depois de  chegado seu cartão cheio de apreensões quanto a mim teria recebido meu sinal de vida. Mas não. Teria  eu de escrever à mão, ir ao  Correio, entrar na fila de atendimento, comprar selo e colocar a carta na caixa própria. Teria sido muito bom se assim houvesse acontecido. Dez horas da manhã de sábado e dou com o Correio fechado. Indago de alguém que por ali passava e fico sabendo que o Correio não funciona aos sábados. E se funcionasse, não seria no Correio que eu compraria selos. Não? Não, explica-me o bondoso informante. Selo a gente compra no barzinho ali em frente. Fiquei com vontade de perguntar se Correio venderia cafezinho e refrigerante, mas desisti da idéia. Carnês do Baú  eu sei que vendem.

            Fui gentilmente atendido no barzinho ali em frente. A senhora pesou o envelope, fora do tamanho padrão,  disse que eu deveria pagar oitenta centavos   e me advertiu que aquele volume não caberia  na caixa de coleta situada do lado de fora do Correio. Ante minha surpresa, ela resolveu o problema:

            -- Se o senhor quiser, pode deixar  aqui comigo e eu o coloco na segunda-feira.

            pude aceitar e agradecer, além de ficar pensando em como o Correio mudou, mesmo.

09/07/2005
(emelauria@uol.com.br)

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