Imaginosa enganação


Estradinha rural.

 

Foi amplamente divulgada e lamentada a morte de José Cretella Júnior, ocorrida a 15 de abril, na provecta marca dos noventa e cinco invernos.

Paulista de Sorocaba, Cretella chegou a titular de Direito Administrativo na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, deixando importantes obras na sua especialidade jurídica. Era homem de vasta cultura e se dedicou ao magistério superior até muito depois de sua aposentadoria na USP.

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 Dois de meus filhos foram alunos seus,  mas o meu xará é que manteve convívio mais próximo e proveitosamente amistoso.

Foi de modo incomum que ele se aproximou do velho mestre, para isso contando com uma particularidade de fazer inveja. É que encontrara num sebo um bem conservado exemplar  do apreciável Dicionário latino-português que Cretella havia organizado, muito tempo  atrás,  em parceria com outro considerado latinista –  Geraldo Ulhoa Cintra.

Pouco haveria de mais na aquisição de um dicionário usado e na exibição do quase troféu a seu coautor. Pouco haveria, se não fosse a peculiaridade daquele volume  de tanto uso nos cursos de boas escolas antigas: trazia embutidas com engenho e arte muitas páginas de colas, as mais legítimas colas de Ovídio e de Virgílio.

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Alguém, possivelmente profissional em artes gráficas, tivera    a paciência e a ousadia de desmontar todos os cadernos do Dicionário e de com todo o capricho interpolar páginas impressas com análises e comentários  de tudo aquilo que o professor poderia pedir numa prova parcial ou num exame final. Depois, reencadernou o livro e lhe colocou vistosa capa dura.

Com certo sadismo até, meu filho levou o incomum volume ao exame do Prof. Cretella, avisando-o antecipadamente de que não disporia da preciosidade, pois já me havia feito presente dela.

Assim, Cretella  pôde ver com os próprios olhos que a terra agora está comendo, que há, por exemplo,  duas páginas 227/228, duas  páginas 275/276, duas páginas 551/552, uma delas do próprio  Dicionário, e a outra integrante  da falcatrua exemplar.

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De fato, é de se admirar a ousadia  daquela cola, tão diferente dos papeizinhos sanfonados, de letra microscópica,  que a maioria dos alunos de todos os tempos e de todas as matérias preparava  para umas sorrateiras  e nervosas olhadelas  no decorrer das provas. É de se admirar ainda o sangue-frio e o prazer da aventura vivida pelo interpolador de páginas, porque ele  podia abrir o livro nas fuças do examinador, colar o que bem entendesse e sair da sala de aula com a certeza de que tinha ido muito bem e que apenas  por raríssima infelicidade alguém o surpreenderia  no exercício ilegal de um ato do qual ele nem podia sequer  contar a mínima vantagem.

Muito provavelmente esse hábil tratante nem fora aluno de Cretella e deve ter enganado um ou mais professores que jamais imaginaram que alguém, sabe-se lá quando e onde, colara desabrida e impunemente  as duras frases de Ovídio e Virgílio.

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Tenho aqui, à minha frente, o tal Dicionário de Cretella e Ulhoa Cintra, acrescido das anotações ilegais.  É um exemplar da sétima edição (revista), publicado pela Companhia Editora Nacional, São Paulo, em  1956. Releio alguns tópicos de páginas legítimas e de páginas ilegítimas. Um primor de contrafação que me leva tardiamente a me indagar se também, ao longo de meu mais de meio século de magistério, alguém não colou ousada e desabridamente nas minhas fuças, sem que eu nada suspeitasse. Muito provável que sim.

 

Coisas de outro Brasil

1- Em todo o tempo em que vigeu a Constituição de 1824 (até 1889), os senadores eram vitalícios. Três nomes de candidatos eram levados ao Imperador, que sacramentava um deles. Os senadores  acabavam sendo amigos, quase parentes, ao fim de dez, vinte ou trinta anos de convívio. As divergências políticas não conseguiam estabelecer inimizades duradouras entre os membros da chamada Câmara Alta.

Às vezes, as discussões azedavam-se, tornavam-se violentas. No meio, porém, do tumulto, ouvia-se a voz irônica e persuasiva de um senador mais velho e mais calejado, reclamando calma a seus pares:

- Nada de brigas! Nada de brigas! Lembremo-nos de que temos de viver juntos toda a vida!

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2- O vitorioso general Osório, herói no Paraguai, ocupava, tempos depois, o cargo de ministro da Guerra.

Tendo-se aberto uma vaga de brigadeiro, Osório levou a Pedro II o decreto promovendo um coronel de brilhante folha de serviços.

Contrariamente ao que sempre fazia, o Imperador não assinou de pronto a merecida promoção. Dias depois, Osório cobrou a assinatura, mas o Imperador objetou:

- Ele é muito moço...

- Melhor que o seja; assim poderá encarregar-se de trabalhos mais penosos – retrucou Osório.

- E dizem que ele é muito mulherengo...

Osório não resistiu e pôs-se a rir:

- Majestade, isso é até uma virtude... Se gostar de mulheres  impedisse promoções, ainda hoje eu seria soldado raso!

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3- Genro do general Sólon Ribeiro, Euclides da Cunha tivera notícia de que o presidente Floriano Peixoto mandara prender aquele militar, que na proclamação da República tivera a triste missão de intimar Pedro II a abandonar o Brasil em vinte e quatro horas.

Num ímpeto de coragem que lhe era tão próprio,  Euclides foi procurar o presidente-ditador e pleitear em favor do sogro.

Contrariamente a seus hábitos ríspidos, Floriano deixou Euclides falar à vontade e depois arrematou:

- Menino, quando seu pai não cogitava sequer de fabricá-lo (a frase é outra, bem mais crua), eu já era amigo de Sólon. Pode retirar-se!

 

09/05/2015
emelauria@uol.com.br

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