A LEGENDA DOS DIAS

             Como não falar? O que falar? Dele restará a certeza de ter sido muito superior a seu tempo. Cômodo e imperfeito catalogá-lo como conservador. Na verdade, o homem de coragem pessoal e de idéias arrojadas capazes de levar sua mensagem de  paz ao mundo todo e de  pôr abaixo até o muro de Berlim,  sabia-se irremissivelmente preso às verdades dogmáticas (sem nenhuma conotação negativa neste adjetivo) da Igreja. Verdades que nem ele, querendo, teria podido mudar, porque acima de qualquer vontade individual.

            Dessas verdades, de caráter pétreo num mundo em vertiginosas mudanças, advém o drama de tantos católicos que vivem numa sociedade em que elas deixaram de ser corriqueiras, vigentes no dia-a-dia. Obedecer a elas passou a ser-lhes impossível, a menos que se conformassem em deixar a vida correr sem a possibilidade do divórcio, da limitação de filhos, do abrandamento dos costumes,  das vitórias grandes ou pequenas do individualismo, dos arbítrios pessoais, das objeções de consciência...

            Em meio à enxurrada de declarações nestes dias dominados pela morte do Papa, nenhuma me pareceu mais realista e mais dura do que esta:

            -- Um papa que satisfizesse às aspirações das pessoas modernas, tendentes ao confortismo, beneficiárias em potencial dos avanços aéticos da ciência e da tecnologia, às concessões do liberalismo –, um papa assim precisaria criar uma nova Igreja...

            E quantos de nós, em menor ou maior dose, não têm em si, atuantes germes do modernismo?

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            Podem ficar sossegadas aquelas bondosas pessoas que, enquanto me falam com carinho do texto de domingo passado (sobre velhas histórias relembradas por minha mãe), perguntam-me se apenas de vez em quando converso com ela. Ao contrário, todos os dias faço isso, mais de uma vez, ainda que sem vagares.  Naquele recente dia chuvoso e de semana santa, ela estava particularmente disposta a falar.

Sobre histórias familiares, tanto do lado materno quanto do paterno, escrevi através dos anos, algumas  claras, outras mais veladas. E ainda tenho muitas mais para escrever, estando algumas apenas no título, outras rascunhadas;  não me ocorrera ainda coligi-las num livro à parte.

           Quem sabe?           

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            Meu amigo e ex-aluno, Mozart José Paulino, casa-branquense apaixonado por sua cidade, ora residente em Boston, diz-se leitor constante do que escrevo. Agora recebo notícias  dando-me conta do trabalho de divulgação que faz entre seus muitos correspondentes por e-mails, espalhados pelo mundo todo. Não me conta  como ainda me envia cópias das respostas que recebe. Fico sabendo, por exemplo, que uma crônica do ano passado, a respeito da presença da chuva nas canções de amor, é a favorita. Fico satisfeito, mesmo levando-se em consideração que meu papel foi mais de compilador de frases do que de criador, propriamente, de um texto.

            

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            Dia 3 de abril foi um domingo daqueles.

            A começar pela hora braba de levantar. Meu primo Hermenegildo Bertocco iria passar aqui por casa entre seis e seis e quinze da manhã!

            Conhecedor de como um Bertocco que se preza é escravo dos horários, tendo pavor de fazer alguém esperar e detestando esperar os outros, dormi preocupado, coloquei dois despertadores (deveria também ter-me apegado ao serviço da Telesp) e acordei, sem despertador meia hora antes  do que seria preciso para fazer tudo sem afobações. Resultado: às 5:53 eu estava prontíssimo, caminhando daqui para ali, na calçada de minha rua. Consegui assim cumprir boa parte de minha quilometragem diária. Meu primo chegou às 6:12.

            Iríamos a Araras assistir à entrega de um prêmio especial que o Rotary Clube instituiu em comemoração ao seu centenário. Rodolpho Del Guerra, principalmente pelos serviços humanitários que presta à coletividade rio-pardense, seria um dos oito agraciados.

            fomos nós três, mais Ubirajara Ottoni da Silva, mal sentindo a viagem passar, porque não nos faltou assunto, quase sempre rememorativo e alegre. Tínhamos o que contar: nós quatro, juntos, andamos perto  dos trezentos anos!

            Desnecessário dizer que chegamos ao Teatro Estadual de Araras quase junto com os funcionários encarregados de abri-lo. É essa uma das vantagens dos pontuais como nós: esperar bastante pelos outros.

            Uma beleza o tal teatro, projeto de Oscar Niemeyer, construído  durante a  gestão de Orestes Quércia como governador de São Paulo e por ele inaugurado em março de 1991. Tudo funcional, dois auditórios um com capacidade para quase duzentas pessoas, outro para mais de quatrocentas. Pena o seu entorno, árido, sem uma árvore, um canteiro, uma sombra. Seria exigência do arquiteto?

            Não entrarei em consideração sobre o que pudemos ver e ouvir ao longo das quatro horas da sessão. Houve de tudo, certamente de interesse dos rotarianos.

            No fim da terceira hora, começou a parte da premiação. Notei  gente ainda chegando... Gildo leu o currículo breve de Rodolpho, destacando  o que ele tem doado de veículos e aparelhos para instituições de caráter social e assistencial de nossa cidade. Rodolpho recebeu o prêmio das mãos da governadora distrital do Rotary. Então nossa  caravana (o Bira e eu)  ficou de ouvidos atentos ao esperado discurso de agradecimento. Rodolpho superou até Leônidas, aquele bravo espartano que, ameaçado pelos persas, senhores de tantas flechas que poderiam até cobrir a luz do sol, respondeu-lhes: “Melhor, lutaremos à sombra”, ou seja, não gastou mais do que quatro palavras. Rodolpho disse: “Obrigado”. Apenasmente.  Foi muitíssimo aplaudido pela grande platéia, não pelo seu espírito filantrópico, mas também pelo seu sadio laconismo. Àquela altura, tínhamos ouvido duas espirituosas palestras, dezenas de pronunciamentos e outras tantas intervenções pontuais.

            Claro que eu, deseducadamente, sugeri que viéssemos embora assim que o prêmio lhe foi entregue. Rodolpho discordou e ficou , até a concessão de todos os prêmios e a oitiva dos respectivos discursos. arredou após a calorosa salva de palmas ao pavilhão nacional,  como é da praxe rotária.

            Tirante a desatenção do Gildo, que perdeu a entrada para Cachoeira de Emas e nos proporcionou turístico desvio até perto de Ribeirão Preto, digna de nota, finalmente,  foi a peixada de tucunaré e dourada que devoramos com a fome atrasada das duas da tarde.

 

09/04/2005
(emelauria@uol.com.br)

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