De bermudas, camiseta regata e chinelos de dedo

 
Que fim levou esta placa?

 

Não há como ignorar que em camadas não tão simples da população domina arraigado preconceito contra o ato de se falar com alguma correção. Já não digo de escrever, que aos poucos se transformou em atividade muito rara, desconhecida pela grande maioria. Com a permissividade do e-mail e do facebook, então, quase ninguém se preocupa nem com a evidência mais comum da correção frasal – a ortografia. Colocação de palavras na frase, concordância, regência são tratadas com superior desprezo. Diria que muitas pessoas se põem muito à vontade para escrever, com bermudas, camiseta regata e chinelos de dedo.

Se essa informalidade é produto da internet, esse preconceito vem de mais  longe, desde escritores que queriam forçar a existência de uma língua brasileira, desvinculada do  português de Portugal. José de Alencar, o grande romancista romântico do século XIX, pensava assim; Manuel Bandeira, poeta dos mais apreciados, também defendeu a  língua errada do povo – língua certa do povo. Mário de Andrade foi outro defensor de uma língua nacional completamente divorciada das raízes portuguesas. Fazia questão de grafar milhor, só para aborrecer os puristas...

Quando se pergunta a um aluno (até de Faculdade) por que ele não se esmera no que fala, aplicando aquilo que estudou teoricamente, a resposta-padrão é:

- As pessoas caçoam de quem procura falar certo. Elas acham que se nós falarmos não como elas, que estudaram menos, estamos fazendo pouco-caso delas...

Na verdade, a questão é muito mais complicada, porque embora a pressão do ambiente cultural seja notável, uma das maiores causas de se falar mal reside na falta de leitura e na falta de criação de um espírito crítico que supere essas resistências.

Atitude tão negativa e descuidada em relação à importância da boa expressão oral, além de fruto do que as pessoas ouvem em casa e nos meios de comunicação a seu alcance, é ainda resultado do geral desmazelo de prolação observável no rádio e na televisão, parece que envolvidos em acirrada disputa de cada vez mais rebaixar o nível de seus programas.

 Aprende-se a língua através do ouvido, principalmente. Ora, se o modelo disponível é pobre na construção da frase, no vocabulário e até nos intuitos de longo prazo, fatalmente os novos ouvintes/falantes  se darão por satisfeitos se falarem como “todos” falam. Até o estilo de representação televisivo chamado “naturalista”, em que cada ator interpreta ou inventa suas falas como se estivesse em casa ou na rua, é cada vez mais responsável pela difusão e pacífica aceitação de drogas inomináveis, como os programas popularescos de auditório e de terríveis atestados de indigência intelectual, tão ao gosto dos milhões de voyeurs insaciáveis.

Não há mais contundente forma de rejeição social do que a linguística. Quando alguém se transfere de uma região para outra, ou mesmo de uma escola para outra, um dos obstáculos à sua integração em nova comunidade é sua maneira diferente de falar, o vocabulário específico de que faz uso, as formas regionalistas que incorpora ao seu arsenal de linguagem, de erradicação muito difícil. É sabido que cada um de nós se considera um falante modelar, de forma que todas as manifestações diferentes de nossa própria norma para nós são motivo de estranheza, quando não de chacota. Os cariocas, por exemplo, caçoam abertamente da pronúncia paulista, melhor ainda, da pronúncia paulistana, com seu forte traço de italianismo prosódico.

A rejeição linguística é perversa, fazendo terrível mal às crianças e adolescentes que de repente se veem discriminados pelo jeito de pronunciar, pelo vocabulário regional de que se valem. Uma espécie de bullying.

Li há muito um conto, “Gringuinho”, do autor paranaense Samuel Rawett: relata o drama de um filho de poloneses que se muda para cidade com outro tipo de colonização. A professora, sem nenhum tato, logo quis testar os conhecimentos do menino e deu-lhe tarefa das mais difíceis: ler um trecho do livro adotado naquela sala. Pouco afeito ainda à língua portuguesa (em sua casa todos se expressavam em polonês), o menino pronunciou mal, engasgou, pulou, acabando por ser a massacrada vítima de seus novos e impiedosos colegas, sob os olhares até complacentes da professora.

Voltou para casa arrasado, pensando até em abandonar a escola. Ao invés disso, arquitetou um plano que acabou por lhe abrir o convívio mais sereno com os outros meninos. Ao ser de novo escalado para a leitura em voz alta (os outros já antegozavam risos e brincadeiras), o gringuinho tirou da bolsa escolar um livro, abriu numa página qualquer e a leu com desembaraço e emoção, ante os olhares de espanto dos colegas e da professora. O texto era em polonês! Ninguém entendeu nada do que disse, mas ficou provado que ele sabia ler (e bem) e que merecia o respeito de todos.

A Linguística, como disciplina descritiva, diferentemente da Gramática, normativa, não faz distinção entre o que se convenciona chamar de falar certo e falar errado. De modo geral, ela apenas comprova que em tal época e em tal lugar se emprega esta ou aquela forma. Essa atitude, cientificamente correta em escala globalizante, vem contudo criando em nossas escolas, mormente as públicas, o cômodo e falso entendimento de que os alunos hão de se expressar com naturalidade e desembaraço, sem maiores preocupações com o que a norma culta elegeu como certo ou errado, apenas seguindo o aceitável num determinado meio, em dada época. O resultado dessa política de liberalidade no falar e no escrever faz até algum sentido quando o aluno não alimenta aspiração alguma de continuidade dos estudos ou de ascensão social. Mas pobres daqueles que, oriundos de escolas rurais ou quase (como temos em nossa região), concorrem ao ingresso numa escola de padrão mais alto ou pretendem sucesso na prestação de concursos públicos, onde impera o mais acirrado tradicionalismo gramatical, com questões elaboradas no intuito não de medir conhecimento, mas de detectar o que os candidatos não sabem.

Não são raros os exemplos de professores que, em contato muito prolongado com pessoas pouco hábeis no manejo linguístico, acabem falando como essas. Ao invés de ensinar, são ensinados. Ao invés de convencer, são convencidos.

Tem sido evidenciado que nossas escolas públicas eliminaram, por orientação superior (e ponha-se “superior” nisso), grande parte daqueles obstáculos que, em outras eras, constituíam  exercícios de casa, chamadas orais, avaliações mensais, provas parciais, exames finais, exames de segunda época, reprovações ...

Hoje é cada vez maior a possibilidade de um aluno semianalfabeto chegar à faculdade, formar-se nela e depois exercer tarefas  profissionais que exigem conhecimentos mais fundamentados, pesquisa permanente e a consciência de ser o ensino tarefa das mais importantes. Em todos os países que almejam melhoria de nível cultural, técnico e científico de seus jovens, além de veículo transmissor dos valores de cidadania e solidariedade social, esse preparo dos professores é algo muito sério.

Ao que parece, não é isso que vem acontecendo entre nós: aqui, acaba-se consentindo em  que alunos despreparados cheguem ao final do ensino médio e do ensino superior. Com isso, inflaciona-se o País com outros profissionais de limitados horizontes na cultura e na educação, encarregados por sua vez de transmitir a novas gerações um mínimo de conteúdo e até um mínimo de adequação sociocultural. Criam-se, enfim,  condições para o rebaixamento da qualidade da inserção social.

Quando em testes de capacidade de compreensão de leitura os alunos brasileiros são dos últimos colocados nas comparações internacionais, não se trata de mero acaso ou de falta de sorte: a praga de não se saber ler expandiu-se por todos os quadrantes do Brasil e deixou, há muito, de ser problema apenas escolar. A falta de leitura, por abolir a reflexão, contaminou os valores éticos, os bens culturais, o comportamento social e eliminou as melhores expectativas de um salto de qualidade que tire o Brasil da indigência mental que marginaliza parcelas muito expressivas de nossa população.

Tenha o eventual leitor a certeza de que nesta exposição está muito mais do que minha opinião pessoal, quem sabe pessimista.

 

09/03/2013
emelauria@uol.com.br

 

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