Alegre manhã de chuva

 
Nem parece São José

 

Chuva outra vez? Ou é a mesma desde ontem à tarde?

Dá para pensar no mundo de gente insatisfeita com este verão aguado, com raros dias de piscina, sem conversas jogadas fora em tardes que morrem lentas. Este horário de verão, com o sol brilhando, é que é  um achado para se encompridar a melhor parte do dia.

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Levo agasalho ou não? Não está frio,  apenas úmido. Friagem é veneno,  pode abrir porta para pneumonia – é o que sempre alertam. Resolvo não levar e confiar na camisa de mangas compridas.

Estaciono o carro na praça quase vazia e me encaminho para a papelaria, distante três quadras. Ida e volta são seiscentos metros, calculo pensando em minha meta de caminhar ao menos três mil metros por dia.

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Nem ando cem metros e lá vem a primeira e agradável interrupção. Para não variar, é um ex-aluno (quem não o  foi, numa dada época que abrangeu quase meio século?) e – como o tempo voa! – dentista já aposentado.

Sempre temos de que falar, de quem  recordar, de repassar coisas boas, ainda mais que fomos colegas no curso de Direito, em Niterói, isso no outro milênio.

Meu aluno-dentista-aposentado dirige a conversa para o lado de seu pai, também dentista, que morreu lúcido e forte aos cento e quatro. Fala também da mãe, agora na flor dos noventa e seis, que cobra das pessoas correção na frase. “Não é meio-dia e meio, é meio-dia e meia, meia hora!”, ela explica sempre.

Conta com detalhes a história policialesca de um assalto sofrido pelo pai, quando cometeu a imprudência de deixar umas cédulas de cinquenta e vinte reais à vista de um pedinte. Bem que o velhinho se atarracou com o ladrãozinho que as arrancou de sua mão, mas acabou perdendo a parada e quatrocentos e quarenta e dois reais.

Horas depois do sucedido,  pede ao filho que vá à delegacia de polícia e retifique as declarações dadas por ele ao soldado que atendera a ocorrência:

- Diga a ele que  eu não estava com mil reais, como então afirmei,  mas com quatrocentos e quarenta e dois.

- Pra que isso, pai?

- Pra quê? Se o ladrãozinho for apanhado e apertado, vai sofrer muito, porque encontrarão com ele no máximo os quatrocentos e quarenta e dois reais. Vão pensar que ele está escondendo coisa.

- Tá bom, eu vou lá.

- Ah, peça também que não deixem meu nome sair no noticiário policial da rádio e dos jornais.

E o filho fez tudo conforme o pedido do pai.

No sábado de manhã, é chamado pelo velho:

- Leu o que o jornal deu?

- Colocou seu nome, pai?

- Colocar meu nome assim claramente não colocou, mas disse que a vítima do assalto era um senhor de cento e dois anos, morador na Rua Benjamin Constant. E eu  te pergunto: quem mais, além de mim, mora nesta rua e tem mais de cem anos?

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Aí chega outro dentista aposentado. Melhor: primo-dentista-aposentado.

Com o bancário aposentado que só ouve e nada fala, nós quatro somamos quase trezentos e vinte anos.

- E estamos aqui, firmes, andando, conversando, rindo – resume com otimismo um deles.

Naturalmente lhe passou pela cabeça aquela incrível quantidade de gente de sua idade que já morreu, faleceu, finou, esticou as canelas, bateu as botas,  apitou na curva, abotoou o paletó de madeira, foi desta para melhor, entregou a alma ao Criador.

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Então o primo-dentista-aposentado não perde a vaza e conta pela enésima vez a mentirosa história colocada em circulação pelo presidente do Centro Cultural Baptista Folharini, segundo a qual duas velhinhas estavam comprando revistinhas na loja dele, quando uma delas me vê,  quer ter certeza de que eu sou eu mesmo. Confirmada a suspeita, explica, toda saudosa, ao Baptista:

- Ele foi nosso professor!

Pronto,  assim que as duas saem, o Baptista tira sua peçonhenta conclusão:

- Professor delas, hem? Cada uma deve ter no mínimo noventa anos e você mentindo pra todo mundo dizendo que só tem setenta! Você está beirando os cem !!!

(O que adianta explicar para pessoas de má intenção que se pode ter alunos mais velhos do que o professor, porque  começaram  a estudar em adiantada idade?)

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Mal entro em casa e recebo telefonema de São Paulo. É de outro atento amigo, aluno particular de Latim lá pelos anos cinquenta, o mais aplicado dos rio-pardenses adotivos, que ama de paixão esta nossa terrinha.

Conversa vai, conversa vem (telefonema interurbano hoje parece que é a preço de banana), o amigo-aluno me relata com graça o caso de um sujeito de nossas relações, cheio de episódios marcantes na vida.

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Vinha para a cidade, a cavalo, esse nosso amigo, o Zeca, quando estaca o animal na beira da estrada para um dedinho de prosa com um compadre, refestelado e tomando a fresca da boca da noite no alpendre da casa. Depois de muito papeio, o dono da casa convida o compadre a entrar, enquanto ele mesmo vai amarrar em mourão mais firme o cavalo do visitante. Deixa bem acomodado o amigo e grita para a mulher, que está no fundo da casa:

- Fulana, prepare aí uma jantinha pro compadre Zeca

Ela, pê da vida, chega até o alpendre e pensando ser o marido aquele ali sentado, desabafa:

- Homem de Deus, que é que eu vou arranjar agora pra esse fiduma do compadre Zeca, se nós já jantamos?

Sem se ofender e sem perder minimamente o rebolado, Zeca sugere:

- Mate um franguinho, comadre. Mate um franguinho...

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A chuva continua firme, daquelas criadeiras. Pelo jeito, vai varar outra noite.

 

09/02/2013
emelauria@uol.com.br

 

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