Favorita da Marinha?

            Não, não tenho a intenção de fazer desta coluna uma rival do Cantinho da Saudade, criado e cultivado pelo bom Tony Lourenço, meu aluno de meio século atrás. Mas de quando em quando, cada vez mais amiudado, reconheço, meu assunto tem de girar em torno dos mortos. É que pessoas que conheço de carne e osso ou no simples imaginário estão teimando em morrer. nestes poucos dias foram muitos velórios de gente amiga, isso sem se falar no Golias, um patrimônio cult  do Brasil todo. Como explicou um realista observador dos fatos, nossa geração é a da linha de frente... Cabe-nos morrer, ainda que sem pressa.

.           Nesta semana, Emilinha Borba. Como não se falar dela? Mas com quem falar? Confio nos meus esforçados leitores, que comprovam verdade profunda: vivemos porque os outros nos dão testemunho disso.

 Na segunda-feira à noite, na UNIP, Lando Lofrano e eu –  ele recém-chegado ao nem tão seleto grupo dos setuagenários –  lembrávamos Emilinha Borba. Lando tem grande vivência em matéria  de rádio, jornal, coisas de antanho, tanto da cidade quanto do Brasil e do mundo. Aprendeu muito ouvindo rádio, lendo jornais e revistas, indo ao cinema.

            então uma  das coleguinhas presentes, talvez nem  bem entrada na casa dos trinta, confessou que jamais ouvira falar na tal Emilinha. Perguntou-me se a mãe dela chegara  a conhecê-la. Fiz mentalmente alguns cálculos e respondi com firmeza que não.

            -- Mas seu avô com certeza sim...

            O avô dela passa bem dos oitenta. Idade até para ter ouvido Vicente Celestino, Gastão Formenti, Paraguaçu, cantores da era do rádio de galena...

            Difícil a uma pessoa imaginar hoje a força do rádio nos anos quarenta, cinqüenta. Algumas emissoras, em ondas curtas, tinham alcance continental, quem sabe pela limpidez das faixas pouco saturadas.  A Rádio Nacional do Rio de Janeiro, então, mandava excelente som para o País todo e pontificava poderosa na formação de hábitos, opiniões, tendências, bordões. Até a pronúncia de uma classe mais cuidadosa passou a ter a influência de locutores de impecável dicção, como César Ladeira e Heloísa Helena. Nada de carioquices por parte deles, nada de ss chiantes e rr guturais; eles estabeleceram um modo nacionalmente aceitável de dizer as palavras, que a Rede Globo acabou por consagrar através do Jornal Nacional, tido como boa expressão  da norma culta brasileira. O avô dessa pronúncia abrangente e aceitável em todas as regiões brasileiras foi, sem dúvida, Heron Domingues, o Repórter Esso, “o primeiro a dar as últimas”...

 Sei de gente aqui da cidade que fez questão de conhecer no Rio a Nacional, posta em de igualdade como atração turística com o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, o Maracanã. Eu mesmo, visitando o conterrâneo ilustre Olímpio de Sousa Andrade, autor da insuperável História e Interpretação de “Os Sertões, gostei do seu singelo convite:

-- Quer subir ao  décimo oitavo andar?

Explico: Olímpio era alto funcionário do Ministério da Indústria e Comércio, cuja sede ficava no edifício de  A Noite, Praça Mauá, n.° 7, zona portuária do Rio de Janeiro. O mesmo endereço da Rádio Nacional. Subimos até , Olímpio me mostrou isso e aquilo, o grande auditório, separado do palco por grossa cortina de vidro transparente...Não era a hora de nenhuma das celebridades radiofônicas, atores como Paulo Gracindo, Mário Lago, animadores de auditório como César de Alencar, Manuel Barcelos, Paulo Gracindo, cantores como Francisco Alves, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Marlene e... Emilinha Borba.

  Emilinha Borba, a favorita da Marinha, capa de mil revistas, campeã de recebimento de cartas de fãs, mais mesmo do que Roberto Carlos, como  garante o pesquisador Ricardo Cravo Albim.

Emilinha, eterna rival de Marlene, para  quem perdeu o primeiro concurso de “Rainha do Rádio”, que conquistaria anos depois,  morreu um dia destes, aos oitenta e dois anos, bem situada na vida,  comportadamente vivida.

Se você souber de cor ao menos uma ou duas frases das que vou reproduzir, além de denunciar o que vem procurando esconder, recordará  o  fascínio que ela e suas rivais exerciam sobre o público, notadamente sobre as freqüentadoras dos programas de rádio ao vivo, as tais macacas de auditório:

“ E assim se passaram dez anos, sem eu ver teu rosto, sem beijar teus olhos, sem sentir teus lábios...”

“  Certa vez em Cuba, dançando uma rumba, disseram que eu era escandalosa... Dancei, mas não me incomodei, porque a rumba é em si maliciosa...”

“ Se queres saber se eu te amo ainda, procura entender a minha mágoa infinda. Olha bem nos meus olhos  quando falo contigo e quanta coisa que eles dizem e eu não digo...”

“ Chiquita Bacana na Martinica se veste com uma casca de banana-nanica. Não usa vestido, não usa calção, inverno pra ela é pleno verão. Existencialista com toda a razão, faz o que manda o seu coração...”

Tomara que chova três dias sem parar. A minha grande mágoa é em casa não ter água. Eu preciso me arrumar.”

“ Vai, com jeito vai, senão assim a casa cai...”

O sucesso duradouro de Emilinha Borba, garante o crítico José Ramos Tinhorão, repousa no mito da cinderela às avessas: a menina de família rica que se tornara pobre e reconquistara o prestígio através da música. Artistas do palco, dotados de notável poder de imantação sobre o público humilde dos auditórios das rádios nas décadas de quarenta e cinqüenta, deviam grande parte de seu sucesso à circunstância de representarem a imagem ideal da conquista de posições  sociais de destaque, a partir de condições desfavoráveis. Sem sequer  ser grandes cantores, eram consagrados por seu carisma, por sua maneira afável de lidar com a gente simples que logo formaria seu séqüito,  os chamados fã-clubes.

 De vez em quando até os autores afinados com o  gosto popular cometiam suas gafes  politicamente incorretas. Miguel Gustavo, letrista de renome, foi execrado quando num sambinha de carnaval verbalizou o que tanta gente pensava das macacas de auditório: “Ela é da Emilinha, não sai do César de Alencar... Enquanto isso em minha casa ninguém arranja uma empregada”.

Um desses apaixonados admiradores da  falecida cantora explica agora:

-- A sensação de perder um ídolo é diferente da sensação de perder alguém da família. Parece que eles são tão próximos quanto nossos parentes, mas ao mesmo tempo mexem com muito mais gente.

O advento da televisão marcou o início do fim de  reinado dessas imperatrizes dos auditórios, como foi não Emilinha, mas Marlene, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Elisete Cardoso. De fama nacional absoluta criada pelas apresentações no rádio, pelas longas excursões que abrangiam espetáculos em  dezenas de cidades, a popularidade de Emilinha continuou reconhecida pelos integrantes de seus remanescentes fã-clubes. A queda de venda de seus discos foi fulminante, a ponto de ter gravado LP independente que vendeu em praça pública. Regravou antigos sucessos carnavalescos, lutou bravamente contra o esquecimento de que toda uma geração formada no rádio ao vivo fora vítima.

Por que favorita da Marinha? Porque vencedora de grande concurso patrocinado pela então insuperável Revista do Rádio, que também não suportou o peso da televisão.

 (Para minha irmã Maria Thereza, de Emilinha Borba, vista de pertinho em inesquecível dia de 1956, aqui em São José.)

 

08/10/2005
(emelauria@uol.com.br)

Voltar