Uma amável escola

 

            Sei que no próximo ano a Escola  Estadual Dr. Cândido Rodrigues estará comemorando seu centenário de fundação. Sei também que minha mãe, eu e meus filhos estudamos lá, em diferentes épocas. Sei ainda que minha mulher encerrou lá sua trabalhosa carreira de professora primária.

            Há alguns meses fui convidado a dar entrevista a alunos de uma classe do curso colegial de lá, mas não é de nada disso que pretendo falar, e sim do que me ficou retido na memória não só da escola propriamente, mas das pessoas que lá trabalhavam, dos seus arredores.

            Começo pela praça fronteira, enorme e sem graça. Chão batido de terra, ranhuras abertas pelas enxurradas, árvores dispersas e desleixadas que davam  sombra e uma bolinhas arroxeadas, boas para serem assopradas longe, com um talo de mamoeiro ou gomo de taquara, como indispensável munição das guerras travadas entre moleques.

             Enormíssima a meus olhos de menino aquela espécie de navio ancorado no meio dela, no alto ostentando, como ainda hoje, uma inscrição em ferro, das primeiras vitórias no saber ler: MERCADO MUNICIPAL. Reforma posterior do prédio tirou um de seus encantos: as  muretas baixas na parte externa, que lhe davam um nítido aspecto de embarcação, com convés e tudo.   

            Assim me ficou o Largo do Mercado, que até hoje muita gente nem sabe chamar-se Praça Barão do Rio Branco.

            Das casas, algumas sobrevivem imutáveis, outras sofreram reformas substanciais e a mais imponente delas – o casarão da família Artese – corre o risco de simplesmente ruir, com sua fachada de estilos arquitetônicos variados, hoje recoberta por uma tela plástica, enquanto não se decide a respeito de seu problemático destino. Modestas casinhas deram lugar ao belo prédio do Banco Real. O bom gosto e o espírito conservacionista de seus donos restauraram com requintes de detalhes uma residência original, bem ao lado do ameaçado casarão. A praça recebe hoje especial atenção, graças ao pessoal residente que se reuniu para cuidar de sua correta manutenção.

            Mas o que modificou mais drasticamente na praça foi a arquitetura da própria escola, a primeira que freqüentei. Tenho-a aqui na minha mesa, íntegra na nitidez da foto antiga. Não sei se com a boa mentalidade preservacionista dos tempos atuais a comunidade consentiria na derrubada daquele prédio tão funcional, tão acolhedor, tão cheio de histórias. Outros com a mesma planta resistem bravamente em outras cidades paulistas.

            É sem esforço que me afloram à memória as cores, os cheiros, os sons, as pessoas, os episódios desimportantes em si.  Cheiro de começo do ano escolar, a madeira dos lápis novos recendendo  ao ser desbastada com lâminas, apontadores, canivetes. Cheiro da tinta azul-preta  completada todos os dias nos tinteirinhos das carteiras duplas. Cores alegres de papel impermeável encapando livros e cadernos simples. Sons do sino de verdade, que ou  seu Pedro ou seu Caiuby tocava nos exatos momentos de entrada e de saída dos alunos.

            Era fevereiro de 1939 e morávamos no sobrado da Rua 13 de Maio onde hoje se ergue grande prédio de apartamentos. Escoltado por Ricardo Simonetti, meu vizinho dois anos mais adiantado nos estudos e meu  amigo da vida toda, de lá saí para o Grupo, já uniformizado no primeiro dia de aula: sapatos e meias, calças curtas, azul-marinho, com suspensórios de pano formando um x  às costas; camisa branca de mangas curtas, no bolso ostentando um monograma bordado com as letras CR   e apenas um risquinho logo abaixo: 1.° ano.

            Há anos indago sobre o paradeiro de Maria Leal, a minha provisória professora, enquanto se organizavam as classes. Ninguém parece saber dela – o que lhe tem sido muito vantajoso, porque a vejo sempre moça, elegante em seu vestido claro, saindo do Hotel Brasil, onde morava.

            Mas a minha primeira professora de verdade foi dona Cândida. Assinava o nome de solteira – Cândida Marcondes Godoy --, tinha a presença calma, a bondade enérgica, a letra firme.

            Sem cartilha, aprendi com ela a ler e a escrever, entrando logo num livro que espero um dia reaver de meus guardados meio perdidos: O Bom Colegial, de Morel Marcondes Reis.

 

Minha jangada de vela,

Que vento queres levar?

De dia vento de terra,

De noite vento de mar.

 

             Em que desvão da memória ficou retida esta quadrinha, com melodia e tudo? Só muito mais tarde soube ser de autoria  de Juvenal Galeno, poeta cearense (1836-1931), que Gonçalves Dias aconselhou  a se entregar inteiramente à poesia popular. E ele seguiu à risca a boa recomendação.

              Você aí, que conheceu o prédio velho do Cândido Rodrigues – então o grupo de cima --, imagine-se de frente para ele. Na última sala da direita, bem ao fundo, para lá do pátio interno, ficava nossa classe, o 1° Ano D, período da tarde.

               Foi Dona Cândida que me fez travar conhecimento com a linguagem figurada. A certa altura do ano, talvez setembro, talvez outubro, ela emitiu um geral aviso:

               -- Estudem. Logo o exame baterá à porta.

               Por muito tempo, esperei em vão pelo prometido personagem que haveria de chegar, fazer toque-toque-toque e entrar na classe, para exigir o que eu nunca soube bem o quê.

               De terno branco, baixinho, gordo, voz rouca, de tempos em tempos surgia na classe o seu Edésio Monteiro de Oliveira, o diretor, para a solene entrega de um envelope marrom-claro, que continha o boletim, uma cartolina grossa com as notas de comportamento e de aplicação lançadas manualmente. A gente levava o envelope para casa, com data certa de devolução, se possível com uma contribuiçãozinha para a manutenção da Caixa Escolar, uma espécie de APM daqueles remotos dias. O pai ou a mãe assinava. Com a bela letra que manteve até o fim da vida, meu pai lançava o seu “Domingos Carmo Lauria”. Foi ali que tomei conhecimento daquele Domingos, na verdade o seu prenome. Carmo era só homenagem  a sua santa protetora. Mais importante do que um 90 ou 95 em aplicação era o indispensável 100 em comportamento.

                 Depois de dona Cândida Marcondes Godoy vieram dona Zita Villela, dona Isaura de Paiva Manita e dona Laudelina Gomes de Oliveira, das quais guardo as melhores lembranças. Três  delas acabaram acrescentando os apelidos dos respectivos maridos, mas aqui registro como  elas se assinavam quando minhas professoras.

                Não me lembro de ter precisado  estudar em casa para me sair bem na escola. Na aula, prestava total atenção. Fazia os deveres, e só --  prática bem diferente nos dias de hoje, em que tantas crianças têm o dia todo tomado por mil e um compromissos . Pai e mãe não interferiam em nada, parece que tinham consciência de que os filhos é que deviam se preocupar com essas coisas. O resto do tempo era livre para brincar. O que nunca faltou foi espaço, motivação e companheiros.

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                Durante vários anos, eu mantive na Gazeta do Rio Pardo uma coluna intitulada  “Calidoscópio”. Em 1989, a propósito do cinqüentenário de minha entrada na vida escolar, escrevi o texto “Não foi ontem”, que incluí no livro Nós, os nossos, alguns estranhos, de 1997. Muita coisa que coloquei no artigo de hoje já está lá, naturalmente adequada às circunstâncias do momento.

 

08/09/2007
(emelauria@uol.com.br)

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