Leitura dinâmica
Dou uma corrida de olhos no Estadão e na internet nesta manhã de terça-feira, 4 de junho, e percebo que, se quiser, terei material mais que bastante para uma bela sopa de notícias de todos os assuntos e de todos os (des)gostos. * Hesito entre iniciar a resenha pela festança da chegada de Neymar ao Barcelona ou pela desconcertante homenagem que órgãos ligados à saúde pública prestam às prostitutas de carteirinha, em comemoração ao seu dia mundial, 2 de junho. * O fato de eu ser irremediavelmente corinthiano me faz optar pelo lançador da moda do corte apache entre a moçada em flor. Para nós, reconhecendo o valor dele como bom jogador de bola, é interessante que ele se fixe lá pelas Europas, que se dê muito bem por lá e não nos atrapalhe nas conquistas domésticas, tipo campeonato paulista, brasileiro, quem sabe outra Libertadores, etc., etc. Ele não poucas vezes desequilibrou em nosso desfavor. A tentação é sempre comentar o dinheirão que Neymar não só ganha, mas faz movimentar em propaganda, patrocínios, estimulação de consumo e mamatas alheias. Tomo um só dado: Se algum bilionário russo, desses tantos que pululam no meio futebolístico, quiser arrancar Neymar do Barça, já sabe quanto custará a brincadeirinha da multa rescisória: cento e noventa milhões de euros, coisa de quinhentos e vinte e seis milhões de reais. Mesmo que você, eventual leitor, ganhe muitíssimo bem, digamos trinta mil por mês, já calculou quanto tempo precisará labutar para chegar aos quinhentos e vinte e seis milhões? Faço cuidadosamente as contas na calculadora: trinta mil, no fim de um ano, considerando o décimo terceiro, dão a merrequinha de trezentos e noventa mil reais. Com cinquenta anos de trabalho, o total de seus proventos baterá em dezenove e meio milhões de reais. Ou seja, para você chegar ao valor da multa rescisória do contrato de Neymar, precisa passar por muitas reencarnações! Melhor sonhar em abiscoitar sozinho a megassena acumulada ou se beneficiar com uma das concorrências públicas da construção da ferrovia norte-sul, da exploração do pré-sal, da efetivação do trem-bala, da ampliação de portos e aeroportos. * O Ministério da Saúde lançou nas redes sociais campanha destinada a reduzir o estigma em torno da prostituição. Deve causar fortes discussões, mesmo porque o slogan é muito apelativo: Eu sou feliz sendo prostituta. Ora, vejam só. Onde isso seria verdade? Mulher feliz negociando o corpo jamais admitirá ser chamada de prostituta, meretriz, rameira e assemelhados. Quando menos, miss, artista, atriz, promotora de altos eventos... São cinco os vídeos lançados. A ilustração básica de um deles, reproduzida pelo Estadão, traz a foto de uma das profissionais do sexo sem cacife para sequer inspirar maus pensamentos: lembra uma pessoa comum, de cara lavada, por volta dos trinta e cinco anos, cabelos sem graça, vestido vermelho discreto com uns acessórios meio caipiras em tom cinza, mão direita à cintura, mão esquerda com anelzinho vagabundo, reloginho de pulseira preta. E duas frases: ostensivamente, a tal Eu sou feliz sendo prostituta e a outra, mais apagadinha, com uma mulher desenhada e os cabalísticos dizeres: Sem vergonha, Garota. Parece que ninguém entendeu direito os objetivos da campanha. Tanto, que um professor da Faculdade de Saúde Pública da USP declarou um tanto ressabiado que “quem sabe seja um sinal de que o governo possa retomar uma política de prevenção em aids e saúde pública, lançando até mesmo as campanhas censuradas dirigidas aos gays, que gastaram dinheiro público e não foram utilizadas.” Menos claro do que isso, impossível. Há, mesmo, mil modos de torrar dinheiro dos governos. Coisa rara no Brasil: no mesmo dia, o ministro da Saúde fez suspender a campanha e exonerou o responsável pela disparatada iniciativa. * Está cada vez mais na cara que as coisas não vão bem para o Brasil. Exportações caem. Importações crescem. Concorrência mundial acirra. Dólar supera barreiras. Indústria faz pressão por mais acordos internacionais, porque o mercado interno está desaquecido, a inflação em alta. Claro, você pode sempre ouvir os pronunciamentos oficiais da presidenta, dos ministros, dos parlamentares situacionistas e se convencer de que tudo vai às mil maravilhas, que vivemos no melhor dos mundos. Ainda mais com a chegada das modernas versões do pão e circo dos romanos – a Copa das Confederações e o Mundial de Futebol. * Dou uma olhadela na edição especial de Abril na Copa, que garante: 26 grandes brasileiros explicam o futebol e a Copa no Brasil. Estão entre esses notáveis compatriotas: Ivete Sangalo, Ronaldo Fenômeno, Tony Ramos, Luciano Huck, Isabelle Tuchband, Sabrina Sato e Adriane Galisteu. Estamos mal de grandes brasileiros, penso comigo, mas logo me animo com a agora loiríssima Adriane Galisteu envergando a gloriosa camiseta da CBF e fazendo um gesto de autêntica torcedora em êxtase. Fico meio confuso ao ler, no interior da revistinha, que ela não enverga camiseta nenhuma: tudo foi pintado em cima de seu corpo nu, assim, sem mais nem menos, para se chegar à sua histórica declaração: “Camisa da Seleção vira segunda pele”. Ah, tá explicado. * O PMDB cobra mais espaço no governo. Puxa vida, eles já têm quase tudo – a vice-presidência da República, a presidência da Câmara e do Senado, um monte de ministérios e ainda exigem mais: pois querem maior autonomia nos ministérios sob comando do partido e também cargos no segundo escalão, como diretorias da Infraero. Faz mesmo sentido a frase que corre em Brasília: “Com Têmer, nada a temer”, o PMDB estará onde sempre esteve: na situação. * Entre os poucos miseráveis que têm algum acesso a jornais, quase sempre utilizados como cobertas, deve estar causando espécie o belo anúncio da Trousseau, inverno 2013. Em página praticamente inteira, uma pensativa égua se abriga do friozinho paulistano envergando cachecol de aconchegante lã, que deve custar os tubos. Está à venda em endereços sofisticadíssimos e também no shop on line Trousseau.com.br. Não para quadrúpedes de luxo, mas para potrancas muito bem situadas na vida. Brasil, um país de todos. Pois sim. * Era 1976 e a censura batia firme nos jornais, revistas, rádios, tevês. Dias Gomes invadia os atônitos lares brasileiros com uma notável criação: a novela Saramandaia, inesquecível. Era gente que botava o coração pela boca, gente que expelia formigas pelo nariz, gente que virava lobisomem e até gente que voava. Nada, porém, superou a mulher que, de tanto comer, explodiu bem na praça central da cidadezinha. Uma delícia de imaginações delirantes, com muito jeito de falar mal da vida real brasileira e, principalmente, da ditadura militar então poderosamente imperante. Logo vem aí a versão atualizada do tema fantasioso, texto de Ricardo Linhares: sai a nordestina Saramandaia, entra Bole-Bole, sem definição geográfica no mapa brasileiro. Sai ditadura militar, entra mensalão, inquéritos que acabam em pizza, câmara de vereadores composta por dinossauros da política que não largam o osso nunca. Um retrato de corpo inteiro do Brasil de hoje. É esperar e ver para crer, de preferência em horário decente. Ah, o belíssimo tema musical – Pavão misterioso – de Ednardo, estará presente em gravação original, na áspera voz do próprio autor. Não foi por acaso que Dias Gomes foi e continua sendo um dos nomes definitivos do teatro nacional. Mereceu, mesmo, o assento na Academia Brasileira de Letras. Não merecia ter morrido bobamente, atropelado em São Paulo.
08/06/2013
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