AMIGO LEMBRADO

 

            Um  dia destes, o Trinca, redator do DEMOCRATA, fez-me uma visita técnica e aproveitou a viagem para me devolver umas fotos  que saíram na edição especial de aniversário da cidade.

 

            O Trinca foi embora sem termos tido tempo de comentar as fotos. Só no dia seguinte é que me lembrei de guardá-las, embora estivessem bem protegidas  por um papel do tamanho ofício, aparentemente em branco. Coloquei-as junto com muitas outras e só então, acidentalmente, é que percebi que o papel que lhes servira de sobrecapa não estava de todo em branco.

 

            Numa das faces, justamente aquela que não aparecia como protetora das fotos, estava escrita alguma coisa que fui conferir: eram pequenas notícias para as quais em outras circunstâncias eu não daria maior atenção. Afinal, tratava-se de uma folha de papel apanhada assim a esmo, entre centenas de outras disponíveis num jornal. Tivera uma tarefa prática – a de proteger fotos, nada mais.

 

            Ledo engano: assim de início sem maior curiosidade, mas como que atraído por estranha força, fui lendo aquelas pequenas notícias, cuja origem pude estabelecer: eram extratos de certidões de óbitos das pessoas falecidas nesta cidade numa dada semana de março de 2004. Dos mortos ali relacionados, conheci só um: Antônio de Paiva, com oitenta anos de idade, casado, bancário aposentado, natural de Guaxupé (MG), nascido a seis de junho de 1923, residente na Rua D. Pedro II, bairro do Santo Antônio, filho de Manoel de Paiva e de Ricardina de Jesus, já falecidos. Deixa a viúva Noêmia de Lourdes de Pietro de Paiva e um filho – Marcus Antônio de Paiva.

 

            Aí então me dei conta da providencial escolha daquele papel. Era como se, para censurar minha desatenção e me dar oportunidade de corrigi-la, uma obra aparentemente do puro acaso fizesse o Trinca trazê-lo para mim e me obrigasse a escrever estas linhas de justa rememoração de um bom amigo.

 

            Conheci o Paiva  há já não sei quantos anos, mas seguramente como funcionário do Banco Moreira Sales, depois Unibanco, instalado na Rua Marechal Deodoro em belo prédio hoje sem utilização, que muito antigamente abrigou o Banco Francês e Italiano, ou como lá estava numa vistosa placa, Banca Francese e Italiana per l’America del Sud.

 

            Paiva sempre falou muito alto, muito claro. Diziam os exagerados que o teste de audição usado pelo Dr. Oswaldo Galotti era simples. De seu consultório de médico oftalmologista e otorrinolaringologista, ele mandava o eventual cliente prestar atenção aos

sons que vinham da rua. Quase nada ouvia, mas se não ouvia sequer a voz poderosa do Paiva, era péssimo sinal, estava surdo mesmo! O próprio Paiva repetiu inúmeras vezes a inverídica historinha.

 

            Companheiros políticos, fomos colegas de bancada na Câmara Municipal       na legislatura de 1972 a 1977. Sua conduta como vereador só podia ser aquela de homem reto, franco e limpo. Tinha disciplina partidária, era afável no trato com todos os colegas, mas intransigente em questões de princípios. Talvez por isso não tenha tido sucesso nas outras vezes em que saiu candidato...

 

            Por essa época ele me contou muitos episódios interessantes de sua vida em São Paulo, onde se diplomou contador na famosa Escola de Comércio Álvares Penteado. Na carreira militar, quase foi para a Itália como membro da Força Expedicionária Brasileira. Só não foi porque a guerra terminou enquanto o seu escalão ainda se preparava para embarque. Paiva chegou a sargento e tinha muito orgulho disso. Manteve pela vida toda um porte marcial e aquele corte de cabelo bem militar, quase raspado.

 

            Mas a época em que mais contato tive com Antônio de Paiva foi quando trabalhamos na Faculdade de Filosofia, ele como tesoureiro, eu como professor ou diretor. Também lá sua voz poderosa se fazia ouvir nos corredores, obrigando uma vez ou outra a fecharmos a porta desta ou aquela sala de aula... Pontualíssimo nos horários, rigoroso no exercício de suas funções, mantinha bom relacionamento com todos, embora muitas vezes fosse matematicamente contábil nos pleitos dos alunos às voltas com a inadimplência. Deve ter sofrido um pouco com minha política, como diretor, de facilitar ao máximo as formas de os alunos se acertarem com a Faculdade. Não me arrependo do que fiz, assim como ele nunca se queixou de minhas liberalidades em favor de estudantes reconhecidamente em situação difícil.

 

            Ele e José Megale – outro dedicadíssimo funcionário da FFCL, já aposentados em outras diferentes funções, nem podiam ouvir falar em serem desligados da escola por  terem superado os setenta anos. Os dois acabaram morrendo em pleno exercício, assim como minha saudosa prima Maria Helena Bertocco Landini, que chegou a diretora e muito me auxiliou, em meu último mandato, como assistente de Direção. Os três amaram entranhadamente a Escola e deram a todos permanentes lições desse amor cada vez mais raro e cada vez mais necessário.

 

            Paiva dizia não gostar muito de finais de semana, de férias. Tirar licença, nem pensar, embora motivos às vezes não faltassem, como o precário estado de saúde de sua filha, que acabou morrendo muito jovem. Ou ainda o problema cardíaco que o acometeu; ou o doloroso acidente que sofreu, quando uma peça se desprendeu de máquina elétrica e o atingiu em cheio na boca, fazendo-o perder diversos dentes.

 

            Um filho meu, colega e amigo de Marcus Antônio de Paiva, ficou muito impressionado ao saber da morte do velho Paiva. É que, passando logo de manhã pela Rua D. Pedro II, viu-o à porta de sua casa. Pensou consigo como a vida distanciava as pessoas: morando em São Paulo, meu filho tinha tido nos últimos anos poucas notícias do Marquinho de Paiva, companheiro de escola e de esportes. Fez para si mesmo a promessa de visitar o pai e o filho, para reatar um  velho convívio. Nem deu tempo de tomar providência alguma, porque o Paiva morreria horas depois, de mal súbito.

 

            Fico até constrangido com o puxão de orelhas que recebi não sei de quem, através de uma folha de papel que me chegou às mãos, no mais completo (e aparente) acaso. Não fosse a folha avulsa, com certeza mandada ao jornal pelo Cartório do Registro Civil, eu não teria podido cumprir este elementar dever de justiça e de amizade, tornando pública a admiração não só minha a Antônio de Paiva, pessoa a quem se pode e se deve dirigir antigas e desusadas expressões como cidadão prestante e exemplar pai de família.

 

08/05/2004

emelauria@uol.com.br

 

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