A morte do Mequetrefe
Foi no final de fevereiro que me chegou às mãos um pacote postado em São Paulo por remetente para mim desconhecido, um tal Rodrigo de Almeida Castro. Apresentou-se como filho do Mequetrefe, suponho que o mais velho, com seus cinquenta anos de idade. Em carta manuscrita me dá notícias sobre os últimos dias de meu colega de ginásio, sobre o qual meus leitores tiveram dois longos artigos neste jornal, nos dias 26 de outubro e 30 de novembro do ano passado. Diz ele (Rodrigo) que possivelmente o pai tivera alguns avisos claros de que seu estado de saúde piorava e resolveu pedir socorro. Telefonou ao filho e, sob a solene promessa de nada ser contado à ex-mulher, relatou o que sentia e revelou o desejo de ser internado num hospital de São Paulo. E assim foi feito. Rodrigo se dispôs a ir buscar o pai em Itapetininga, para isso viajando de ônibus, já que precisaria retornar a São Paulo dirigindo o velho Opala, com certeza de valor pouco mais que simbólico, dados seus muitos milhares de quilômetros rodados. Rodrigo encontrou o pai hospedado num bom hotel, um pouco abatido e com certa dificuldade respiratória. A viagem de Itapetininga a São Paulo decorreu sem incidentes, a não serem os dois pedidos de parada formulados pelo velho que “queria sentir o ar do campo”. Na verdade, era o pulmão que não puxava bem. A internação deu-se com facilidade: plano de saúde caro e com pagamento em dia resolve tudo. Pedro de Castro, o meu amigo Mequetrefe, foi examinado por vários médicos que concordaram: o caso dele era mesmo de internação. Um dos médicos comunicou a Rodrigo que pouco havia para ser feito: o coração do velho ia mal, a pressão oscilava, o estado geral era de debilidade e os oitenta e dois anos já não ajudavam. Era a falência das funções. Mequetrefe acabou morrendo sem maiores dramas, apagando-se como uma vela toda consumida. Foi sepultado dia 18 de janeiro, no cemitério da Vila Formosa, presentes mais um filho, uma filha e a ex-mulher, que se manteve o tempo todo em respeitoso silêncio. (Estou aqui empregando, sempre que possível, as mesmas palavras de Rodrigo na carta manuscrita que acompanhava um outro objeto, com vaga forma de livro, de caderno de anotações.) Mequetrefe havia recomendado ao filho que me entregasse, assim fechado e intacto, o tal objeto. Deu-lhe meu nome, endereço, telefone, e-mail, enfim todas as pistas para me encontrar. Foi com um misto de emoção e de curiosidade que abri o que se poderia chamar “testamento moral” de Pedro de Oliveira Castro, Mequetrefe por indesejado apelido, e meu colega na terceira série ginasial do “Euclides da Cunha” no longínquo ano de 1945. Era um cadernão de capa dura, com cerca de duzentas páginas, que serviu de repositório aos escritos, anotações e reflexões de um homem solitário, antissocial e nômade por natureza. Ora escrevia a tinta, ora a lápis; por vezes o texto era grande, avançando por duas ou três páginas; de repente, uma frase solta, um lembrete, um recorte, um pensamento entre aspas. Na contracapa, dentro de um envelope, mensagem para mim: “ Márcio, o amigo que me sobrou: leia e dê o merecido fim a este meu companheiro de tanto tempo”. Havia ainda umas vinte páginas sem uso. * Li com cuidado aquilo tudo, selecionei coisas que agora publico e o guardarei junto com algum material meu cuja destinação final ainda não está decidida. Provavelmente o descarte. * Quando se refere à ex-mulher, contrariamente ao que me disse de viva voz, Mequetrefe não a critica nem a deprecia: deixa sempre pairar o pensamento de que a culpa dos desentendimentos, dos atritos e da inevitável separação era apenas dele, desassossegado em casa, incapaz de suportar a mesmice de responsabilidades da vida conjugal e familiar. Jamais deixou de cumprir seus encargos financeiros para com ela e os filhos. * Nomes de mulheres aparecem, e muito. Ele tem palavras de especial carinho pela mineira Helenice, de Governador Valadares, “jovem delicada, com idade para ser minha filha”, conforme anotação de 8 de março de 1986. Tinha ele seus cinquenta e cinco anos e ela na flor dos vinte e poucos. Ao que tudo indica, essa foi das suas ligações mais duradouras, porque há anotações de ele ter voltado diversas vezes àquela cidade do norte de Minas, não propriamente a serviço profissional. * Causou-lhe forte impressão de beleza uma pianista belga que se apresentava, no final de 1998, em Florianópolis. Ela, Eugénie Montand, que se hospedou no mesmo hotel em que ele ficava, deu três recitais numa semana em lugares diferentes da capital catarinense e ele esteve presente e atento nos três, apesar de não ser chegado nem a Debussy nem a Ravel. Encheu-se de coragem e se aproximou dela, na segunda noite. Disse-lhe algumas palavras elogiosas e Eugénie lhe fez gestos de que nada estava entendendo. E repetia a frase: Je ne parle pas portugais... Comenta Mequetrefe: “Tenho certeza de que nos teríamos entendido perfeitamente sem necessidade de uma só palavra...” Ah, os recursos da linguagem não verbal, emendo eu. * Em Cuiabá, em 1980, engraçou-se por uma moça de seus trinta e muitos anos, na sala de espera de um cinema. Foi uma intensa troca de olhares e de alguns sorrisos estimuladores. Antes que sequer lhe dirigisse a palavra, apareceu-lhe de repente pela frente um homenzarrão, que o advertiu: “Nem tente, nem tente. Ela tem dono!” * Caso duro de enfrentar foi o ocorrido em Ribeirão Preto, isso já em 2001, quando uma senhora meio passadona, mas de classe e em boa forma, procurou-o no hotel em que se hospedava e sem mais rodeios expôs ao Mequetrefe a difícil situação de seu marido perante o Fisco e a Polícia Federal – um complicado assunto que envolvia notas frias, caixa-dois, depósitos no exterior e outros delitos de natureza grave. Espantou-o a naturalidade do que a senhora lhe propôs: “O senhor faça o que puder pelo meu marido, tire-o dessa embrulhada e eu farei muito mais pelo senhor”. Mesmo com seus muitos anos de vida funcional, Mequetrefe sentiu-se acuado e receoso. Relatou o ocorrido a seu chefe imediato e solicitou missão em qualquer lugar, bem longe de Ribeirão. Esse relato foi o último que envolveu mulher. * Há muitas anotações sem data. Muito número de telefones, endereços às vezes em código. Nada que revele, no entanto, duradouras amizades, masculinas ou femininas. * Sobre seu período de São José do Rio Pardo, nem uma palavra. Muito menos sobre aquele triste episódio na aula de Português, em que ganhou para sempre entre seus colegas o pouco elogioso apelido de Mequetrefe. Bullying dói. Bullying é inesquecível. * A respeito de seus filhos, fala pouco, mas sobre os seus netos, não há a mínima referência. Isso emocionalmente penso eu que seja mau, porque muitas vezes o bom convívio entre avô e netos supera e sublima algum atrito ou desentendimento que tenha havido entre o pai e os filhos. Não foi sem razão que o sábio Victor Hugo disse que ser avô é ser pai com açúcar. O contato com os netos enriquece os velhos. Pessoalmente, lamento que nenhum dos meus sete netos tenha morado em minha cidade, melhor ainda, na minha casa: bem que gostaria de lhes ter acompanhado o crescimento, como os meus pais fizeram tão competentemente com os meus filhos. Esse enriquecedor convívio os marcou para sempre e deu aos velhos uma repousante sensação de segurança. * Enquanto meu finado amigo Pedro de Oliveira Castro, o Mequetrefe, não soube/pôde cativar os filhos e netos, outro amigo meu, também de minha faixa etária, um dia destes mostrou-me feliz da vida um cartão de boas-festas que no final do ano passado recebera de seu neto mais velho, agora estudando nos Estados Unidos. Este meu amigo, tão diferente do Mequetrefe no cultivo do convívio familiar, fez questão de me procurar com o propósito único de me fazer ler o cartão coberto de palavras de saudade, reconhecimento, valorização de tantos lances vividos juntos entre pessoas tão distantes no tempo, e agora no espaço. Este meu felizardo amigo, cujo nome não vejo necessidade de divulgar, com certeza é muito mais feliz do que foi o Mequetrefe, porque viveu e vive com intensidade esse amável contato que, mesmo de longe, eu também sinto, desejo e valorizo, enquanto o egocêntrico Mequetrefe deixou passar em brancas nuvens uma das mais profundas situações afetivas que alguém possa viver. * Morre-se como se vive, afirma sem maiores provas uma frase popular. Nem sempre é assim, mas no caso de meu amigo Mequetrefe ela fez todo o sentido, para desprazer de tanta gente que, apesar de tudo, quis bem ao meu complicado colega de distante série de ginásio.
08/03/2014
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