Gazeta do Rio Pardo, 5-8-1933 – Ano XXIV


Contraluz no Recanto.

Não exageremos: não cheguei a colaborar na Gazeta de Valêncio Bulcão, que modestamente aparecia no frontispício como V. Bulcão, diretor-proprietário. Minha estreia no velho semanário deu-se em 1951, já na fase da linotipo e da grande impressora plana, tudo novinho ali na esquina da Campos Sales com a Saldanha Marinho, hoje Dr. João Gabriel Ribeiro.

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 Recordo-me de Valêncio, até atendendo em sua já então desprovida papelaria, ali na Rua João Pessoa, entre a Loja Nova, de Sibahy & Aga, e a residência da família de Jacinto Parisi. Quem conseguir localizar a Gazeta, pelas pistas que dei, já dobrou os setenta ou está beirando. É que até a rua mais uma vez mudou de nome: era  João Pessoa e passou a Francisquinho Dias, tendo antes sido Américo de Campos e dos Calabreses. A Loja Nova deslocou-se uns metros, cedendo lugar por muito tempo à Churrascaria do Aga, de provocar saudade. Jacinto Parisi, que lidava com couros e usava gravata-borboleta, morreu há muito tempo. Tudo se modificou no pedaço, hoje ocupado por um hotel, belas lojas e por outro prédio em construção.

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Pobre a Gazeta de Bulcão: composta manualmente, letra por letra, era um semanário discreto, educado, antissensacionalista. O retrato do dono.

Tem quatro páginas o exemplar  de 5 de agosto de 1933, que hoje comento, dando-me a terceira a clara ideia de ser permanente. Apareceria igual, como que estereotipada, em diversos outros números.

 Traz anúncio de duas funerárias, a “São Miguel”, de Francisco Cerávolo & Cia., que atende a “chamados a qualquer hora do dia e da noite” e mantém depósito de caixões mortuários. Endereço: Rua Benjamin Constant, 5, com telefone 56. Já a “São José”, de Paschoal Cerávolo & Filho, tem o telefone 12 e localiza-se na Rua João Pessoa, 39, “onde encontra-se (sic) exposto o variado estoque de caixões desde o INDIGENTE ao mais RICO”. Também esta não escolhe hora para servir e dispõe de autocoche fúnebre. (Alguém há de se lembrar do tal autocoche fúnebre, aquele lúgubre carro, preto com enfeites dourados, cortinas negras de franjas e com anjos entalhados na madeira, de restrito uso, só para enterros de pompa.)

O que não falta na mesma terceira página são anúncios de remédios: Xarope São João (“milagre de curas assombrosas!”), Contratosse (“grande remédio de efeito sensacional”), Vinho Creosotado (“específico para as vias respiratórias”), Bromil (“Tosse? Bromil”).

Por que tantos  remédios das vias respiratórias? Creio que fazia invernos rigorosos, que o número de fumantes era imenso e em sua grande maioria consumidores de cigarros de palha, os tais arrebenta-peitos.

Fazia sucesso o Sal de Fructa Eno. (“Cabe às mães zelar pela função intestinal nos filhos. Dai às crianças, de vez em quando, Sal de Fructa Eno, que é laxante suave, benigno e eficaz”).

A Casa Bulcão vendia papéis para cartas de 2$500 para cima. Quanto valeria hoje? Quem ainda compra papel de carta?

Devia-se escrever com tinta Oca (azul-escura e vermelha), fórmula do farmacêutico-químico Manuel Oca, caixa postal 26, Mococa.

Expurgando-se a lavoura com bissulfureto de  carbono impuro ou mal retificado, estragava-se a colheita. O bom chamava-se Júpiter, da Elekeiroz. Júpiter também dava nome a um formicida, “o carrasco da saúva”. (Vim a saber, bem mais recentemente, que Elekeiroz era o nome de fantasia de Luiz de Queiroz, agrônomo conceituadíssimo, que deu nome à Escola Superior de Agricultura de Piracicaba, hoje incorporada à Universidade de São Paulo.)

A segunda página já garantia: “Se é Bayer é bom”, e elogiava em clichê ilustrado a ação da Cafiaspirina “nas dores reumáticas, nos resfriados leves, nas dores de cabeça, dentes e ouvidos, nas enxaquecas, etc.”

“Auxiliai o asilo comprando flores e hortaliças” –  este o apelo da Horticultura Nossa Senhora de Lourdes, do Asilo Padre Euclides.

Bom pó de arroz, só Gaby.

Água-de-colônia Gaby, das melhores, a mais barata.

O melhor esmalte para unhas, Gaby.

 Nada comparável ao óleo de babosa perfumado Gaby.

O Elixir de Nogueira cura cravos e panos, mas o Vinho Creosotado cura tuberculose até o segundo grau.

Entrando em conflito  com a página 3, a página 2 garante que Sardinha é a melhor tinta nacional e deve merecer a preferência. Está à venda na Casa Bulcão em frascos de 1/8 e ¼, que suponho serem de litro. Gastava-se muita tinta de escrever naquele tempo.

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Seriíssima advertência do alto da segunda página:  “Idade de perigo para suas filhas”. Fico por uns instantes apreensivo, porque apesar dos oitenta anos  que nos separam do velho jornal, penso no que ainda hoje possa atingir as duas que tenho, além de duas netas. Felizmente, o perigo não passa da anemia e da clorose, deficiências próprias daquelas que entram na puberdade e precisam fortalecer o organismo, enriquecer o sangue. Minhas filhas estão a salvo pela idade e creio que minhas netas também, porque o aspecto delas é saudável, apesar de não terem tomado jamais a solução ali preconizada: Emulsão de Scott, repugnante como quê, aquela de um sujeito carregando às costas um bacalhau de tamanho bem adequado para ilustrar mentiras de pescador.

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Assunto palpitante da primeira página: a visita do Dr. Romão Gomes, um dos heróis da recém-finda Revolução de 1932, “o qual aqui veio proferir conferência visando preparar os meios de salvação do país que está falido, podendo chegar a perder a sua autonomia, se os estrangeiros, nossos credores, entenderem de aproveitar-se de nossa precária situação econômica-financeira (sic), que de fato é alarmante”.

 (Ainda bem que hoje tudo está tão diferente, com o país em boas mãos, o PIB crescente, a balança comercial favorável, o povo esperançoso e feliz.)

Romão Gomes... Quem diria. Hoje é o patrono de um tristemente famoso  presídio destinado a recolher policiais paulistas.

 A Casa Bulcão vendia bons livros, mas nenhum é citado como exemplo.

 O dia 15 de agosto era estranhamente considerado como a “mais notável efeméride da vida do grande escritor de ‘Os Sertões’ e outras obras duradouras”.

 As senhoras Isaura Manita (minha professora no terceiro ano do Cândido Rodrigues) e Negrinha de Ávila  promoveram uma subscrição de 459 mil-réis, depositados no Banco F. Barreto, “a fim de ser adquirido um nicho para os santos representando o Grupo do Rosário, o qual será encomendado em São Paulo”. Claro, não?

 Amadeu Vita, instalado no prédio do Fascio (hoje do Centro Cultural Ítalo-Brasileiro), garante preços módicos para o concerto (sic) de relógios porque tem “oficina para os misteres relativos”. Entenderam?

 A Casa Bulcão dispunha de cordas para violino, violão e bandolim.

 A  Academia de Comércio e Colégio São José ofereciam “cursos noturnos para ambos os sexos”.

 A Loção Brilhante fazia voltar a cor primitiva dos cabelos em oito dias. “Não pinta porque não é tintura. Não queima porque não contém sais nocivos. É uma fórmula científica do grande botânico Dr. Ground, cujo segredo foi comprado por duzentos contos de réis”.

 Em suma: doenças houvesse, que remédios não faltariam. Morria-se com a certeza de um bom atendimento funerário. A Casa Bulcão, de Valêncio Bulcão, era a maior anunciante da Gazeta, de Valêncio Bulcão. Euclides da Cunha já era vítima da impropriedade das palavras escritas em seu louvor. Havia muita gente  vaidosa. Muita gente trabalhava para a comunidade. Ou o Brasil acabava com a saúva, ou a saúva acabava com o Brasil – já proclamara Monteiro Lobato.

 E pensava-se que o Brasil ainda não pertencesse a seus credores internacionais.

 O que mudou, mesmo, foi a linguagem jornalística e publicitária.

 

08/02/2014
emelauria@uol.com.br

 

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