Dez anos na Europa
De Luís Tadeu Silvestre recebi sempre respeitosa atenção e provas de amizade. Lembro-me dele aqui em casa, trazido por Marina, então sua professora numa série inicial da Escola Estadual Dr. Cândido Rodrigues. Marina certamente gostava dele, apesar de algumas peraltices próprias da idade – tinha ele talvez uns oito anos. O tempo passou, perdemos contato, até nos encontrarmos de novo com ele, então um solícito garçom em restaurante da cidade. Depois, muito depois, a visita inesperada e um mundo de histórias para contar: Luís Tadeu Silvestre estava no Brasil a passeio, em férias de seu trabalho de motorista de ônibus e caminhões na Europa, mais frequentemente em Portugal. Polido, boa figura, bem-falante. Como caminhoneiro tinha viajado pela Europa Ocidental (Portugal, Espanha, França, Alemanha, principalmente), prestando atenção a tudo, observando detalhes, certamente já com a ideia de um dia, longínquo ainda, colocar aquilo no papel, ilustrar com fotos de cada local visitado, escrever enfim um livro que contasse seus trabalhos, seus sofrimentos, suas vitórias. A vida de um afrodescendente brasileiro na Europa. Pois não é que, no começo de dezembro, dou de novo com Tadeu, agora na sauna do Rio Pardo FC? Muito conversamos naqueles ambientes acalorados, ele falando mais do que ouvindo, porque, afinal, quem havia deixado esta cidade, este País fora ele. Tinha novidades à beça. Interessantes as mudanças que pude observar na construção de suas frases: falava um português naturalmente escorreito, com sensível influência lusitana no arranjo todo da frase, no vocabulário, na colocação de pronomes, no sotaque. (Bem verdade que José Saramago sempre disse que português não tem sotaque, brasileiro sim... Eles são os donos da língua, da qual falamos uma variante impura...) Tadeu domina bem o inglês e agora estuda com afinco o francês. Espanhol tudo o mundo pensa que sabe. Aí ele me contou um pouco de suas peripécias (muitas vezes tendo por companheira a esposa, Maria Luiza), algum sofrimento por causa de preconceitos, mas no balanço geral uma agradável sensação de que tudo havia valido a pena, porque sua alma não se apequenara (não imagino se ele conhecia o verso de Pessoa) e soubera sempre aprender toda espécie de lição, seja no trato com pessoas, seja na observação de costumes locais, seja ainda na valorização cultural do que pôde captar em suas visitas a muitos lugares de interesse turístico e histórico. E então me fez a revelação: estava com um texto pronto, cerca de oitenta e cinco laudas, além de rico material fotográfico suficiente para montar um alentado volume. Formulou o pedido que não pude negar: que eu passasse um pente-fino no texto todo, acertando aqui e ali... Dias depois, recebi pela internet, num CD, o minucioso relato e as muitas dezenas de fotos ilustrativas. Conhecendo o amor sincero que os autores demonstram com respeito ao que escrevem, expliquei-lhe que acertaria minimamente a sua frase, sem modificar na essência o seu relato e o seu estilo, fosse lá o que esta palavra abrangesse. Como bem condensou um crítico francês dos sabidíssimos, o estilo é o próprio homem... Isso quer dizer que mexer muito à vontade na expressão do pensamento alheio será quase sempre um desserviço a quem escreve, mormente quando o autor põe nas frases todo o sentimento, ainda que expresso de um modo que eu poderia achar modificável. Com as larguezas do tempo de aposentado, logo dei conta de minha tarefa, podando aqui e ali, arranjando isso ou aquilo, sugerindo algumas alternativas de textos, desde que nada ficasse mais parecido comigo do que com Luís Tadeu Silvestre. Pelo que me disse por telefone, ele parece ter gostado das emendas que fiz, porque no fundo nada de essencial foi modificado. Além do mais, em qualquer tempo, ele poderá descartar minhas sugestões e reaproveitar a forma original. Surpresa tive, ao final do texto, quando dei com suas duas homenagens: à sua Mãe, viva e sã, e a Marina, que segundo ele, introduziu-o no universo da escrita. Não sou de desestimular ninguém, mas levei grande susto quando Tadeu me revelou a extensão de seu sonho: publicar o texto e todas as fotos coloridas disponíveis, numa tiragem inicial de cinco mil exemplares. Ele não deve ter gostado de minha cara de espanto, menos ainda da sugestão que lhe fiz: antes dessa dispendiosa aventura editorial, lançar uma edição bem mais restrita, que fizesse de seu livro uma boa memória dos seus dez anos de Europa, destinada em princípio a um repositório familiar, a um belo presente a amigos seus dos dois lados do Atlântico... Pelo que senti, Tadeu – curioso e teimoso, como se classifica, não seguirá minha sugestão e tentará partir desde logo para a grande edição, a menos que os custos de tudo o reconduzam a uma realidade mais simples. Oitenta e cinco laudas, ainda que com espaços generosos, dão pouco mais do que um opúsculo, quem sabe não ultrapassando uma espécie de prova de fogo: considera-se livro quando o volume para em pé... Junto, porém, com o material digitado, rechear o livro com algumas dezenas de fotos faz tudo mudar de figura: o exemplar fica bem nutrido e... caríssimo. Pretendo ilustrar este meu artigo com uma ou duas das fotos de Tadeu, mas desde logo ponho em destaque alguns tópicos tratados cruamente no livro e que mais me chamaram a atenção: - seus encontros e desencontros com pessoas preconceituosas que não acreditavam em sua capacidade profissional de motorista de caminhões pesados nas moderníssimas autoestradas europeias; - sua persistência no trabalho e na conquista de objetivos que sua vontade de vencer levou avante; - as condições sub-humanas em que vivem os milhões de migrantes originários de países pobres da própria Europa; - o rigor das leis de trânsito em qualquer país da Comunidade Europeia; - o rígido controle exercido sobre os caminhoneiros quanto à velocidade máxima, às horas obrigatórias de repouso dos condutores no dia, na semana e no mês. Os tacógrafos de bordo vigiam e anotam tudo e as empresas transportadoras não perdoam o mínimo deslize de seus empregados, multando-os ou despedindo-os por justa causa; - os riscos corridos pelos migrantes em situação irregular, na sua ânsia de entrarem nos países que oferecem melhores condições de trabalho, e por isso mesmo com exigências redobradas O exemplo mais comovente dessa coragem, por vezes mal avaliada, está no relato que Tadeu faz da aventurosa travessia do canal da Mancha, através do Eurotúnel. Os pesados caminhões de transporte que vão da França para a Inglaterra (ou vice-versa) são colocados em gôndolas ferroviárias para a travessia submarina. Seus motoristas alojam-se em acomodações próprias, dotadas de aparelhamento de pressurização, porque atravessar o mar, a dezenas de metros de profundidade, faz a pressão atmosférica subir a níveis insuportáveis para as pessoas que viajem sem proteção tecnológica. Não raro, ao fim da curta travessia, migrantes clandestinos, com entradas irregulares nas gôndolas, acabam pagando com a vida tanta ousadia. Sucesso ao Tadeu e ao seu sonho, tão perto da realidade.
08/01/2011
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