COISAS DA INTUIÇÃO

 

Não faz tanto tempo assim, mas eu ainda lecionava na Faculdade de Filosofia.

 

Ao término de uma aula de Teoria da Literatura, um aluno meio barbudo, cabeludo, com todo o jeito de ter mais idade do que a média da turma, veio ter comigo como para pedir maiores esclarecimentos a respeito do assunto tratado. Atitude rara, porque hoje dificilmente alunos conseguem ficar em classe até o final dos trabalhos e saem por qualquer motivo, desde tomar água, lavar as mãos, fumar, comer lanche... Isso quando entram!

 

O tema de minha exposição tinha sido as diferentes atitudes mentais que acabam distinguindo fundamentalmente arte, filosofia, religião e ciência, ou seja, intuição, especulação, revelação e experimentação.

 

O barbudinho estava interessado em saber mais sobre intuição, mesmo porque o impressionara uma de suas características – ser um tipo de conhecimento dito de primeiro grau, que não exige conhecimento anterior. Pessoas intuitivas são assim, nascem com qualidades especiais que podem ao longo da vida ser estimuladas, sufocadas, mas não criadas nem eliminadas.

 

- Isso quer dizer que todos nós trazemos uma carga intuitiva ?

 

Respondi que sim, todos a trazemos em maior ou menor escala.

 

Aí  ele se animou e revelou alguns de seus pendores naturais, como certa facilidade em escrever, dançar, cantar e sua insuperável inabilidade em desenhar, pintar...

 

Fiquei com vontade de lhe revelar que meu caso era bem pior, porque tirando alguma facilidade de escrever e ensinar, a vida toda tenho lutado contra a falta de queda para desenhar, pintar, dançar, cantar, executar qualquer instrumento musical ou mesmo tarefas de certa habilidade. Talvez me salve a intuição de bem apreciar o que vejo, o que ouço, o que sinto.

 

Mas nada disso era o exato ponto da questão que ele queria tratar. Estava interessadíssimo em saber algo da intuição no campo da afetividade, dos sentimentos.

 

Então lhe disse, a propósito de uma pergunta sua, que o próprio nascimento do amor é percebido intuitivamente, assim como a chegada de suas crises e até seu término. Lembrei-lhe, deitando um pouco de erudição, que o termo intuição está ligado ao verbo latino intuire, “ver por dentro”. Daí ser a intuição uma espécie de sabedoria interior, um sexto sentido, uma inteligência que permite resoluções ou elaborações com base na visão interna que a pessoa tem de seu caso, de seu problema, de seu tema.

 

- Puxa, professor, está ficando complicado!

 

- Você conhece uma velha canção do Chico Buarque em que o namorado faz um tipo de partilha de bens com a ex-namorada? Trocando em miúdos, deixará para ela a medida do Bonfim, mas levará um disco do Pixinguinha; deixará mais isso, mas levará um livro de Neruda que ela jamais conseguiu ler. Promete sair dali sem alarde, com a leve impressão de ir tarde...

 

- Sim, conheço e até já cantei isso numa festinha de amigos.

 

- Pois é. Chico Buarque nesse texto de ruptura amorosa  não mostra apenas ter perfeita noção intuitiva do fim do caso, mas sabe exatamente o instante em que na sua mente se foram condensando conhecimentos e raciocínios lógicos, de súbito revelados num dado momento que em inglês se chama insight...

 

- Insight...

 

- É como um clique lá dentro do cérebro, que põe ordem nas coisas. A pessoa depois disso chega a se questionar até com excesso de rigor: “Como é que suportei tanto? Como é que não percebi o que estava acontecendo? Como é que alimentei impossíveis esperanças, quando tudo, desde o começo, estava claro, claríssimo?”

 

- Nossa, professor, até parece que o Sr. ficou sabendo de meu namoro tão bem começado, tão ao gosto de nossas famílias, que de repente desandou?

 

- Não é preciso saber  de nada, particularmente. É que as pessoas têm a ilusão de que as aventuras da afetividade só aconteceram com elas, quando na verdade tudo segue parâmetros seculares, milenares. Todos querem que os estados de felicidade durem para sempre, que os caminhos sejam sempre livres e paralelos. Procura-se concertar aqui, remediar ali, desculpar além, mas com maior ou menor presteza os fatos de vidas tão juntas de repente caem em divergências e as pessoas se vão afastando. Uma delas percebe tudo com antecipação e nitidez, mas a outra bem que quer reconduzir tudo aos trilhos, que necessariamente precisam ser paralelos para bem funcionar.

 

- É, aconteceu isso comigo e eu demorei muito para perceber.

 

- Não só você. A maioria absoluta dos homens tem nesses assuntos a obtusidade de São Pedro. São uns kephas, uns cabeças-duras. Mas você não teve nenhum pressentimento, nenhum presságio de tudo isso?

 

- Eu nem sei a diferença que pode haver entre pressentimento e presságio...

 

- Em resumo muito resumido, pressentimento é como a forte sensação de que um fato vai ocorrer. Presságio é a observação de um fato que servirá de ponto de partida para a ocorrência de outro fato. É uma espécie de sinal...

 

- Xi, tive muitos sinais, mas em minha cegueira preferi ignorá-los solenemente. O Sr. foi longe nessa história de intuição...

 

- Muito menos do que eu deveria saber com minha idade, com minhas leituras, com minha vivência. Parece que as pessoas nunca aprendem o suficiente e se deixam não poucas vezes ignorar claras intuições, claros sinais.

 

- E isso é ruim?

 

- Não, às vezes é ótimo, mas tem seu preço. Olhe, você é muito jovem e cheio de futuro para pensar que um primeiro baque afetivo possa ter conseqüências definitivas por toda a sua vida. A juventude tem todos os remédios para superar males de amor, ainda aqueles que pareçam incuráveis.

 

- E em outras idades, professor?

 

- Acho que a capacidade de recomposição é muito variável. A literatura tem milhares de exemplos de desilusões amorosas que resistiram por vidas inteiras e se tornaram mesmo a própria razão dessas vidas. Cheia também de amores que têm a rapidez e intensidade do relâmpago. A literatura tem de tudo.

 

Ainda conversamos mais um pouco e logo o rapaz fez menção de precisar sair correndo para garantir lugar no ônibus que o levaria de volta a sua cidade.

 

Logo depois me aposentei na Faculdade e não tive mais notícias do moço barbudo e cabeludo que  num dia de muita necessidade se abriu com seu professor que ele julgou confiável em coisas do coração, quem sabe pelo adiantado da idade.

 

 Talvez nem volte a ver o tal rapaz. Talvez nem tenha outras notícias suas.

 

07/11/2009
e
10/04/2004
emelauria@uol.com.br)

 

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