Hora de pura saudade
Critérios que com certeza são mais de ordem afetiva do que racional, colocam-me na privilegiada condição de homenageado nas comemorações do setuagésimo quinto aniversário de inauguração do prédio da Escola Euclides da Cunha, agora no dia 15 de outubro. Junto comigo, Maria José Campos Frigo e Roque Cônsolo, também ex-alunos do “Euclides” e com larguíssima folha de serviços não só ao ensino, mas à educação, à coletividade. Maria José Campos, no longínquo 18 de outubro de 1936, foi a aluna oradora numa solenidade ainda hoje sem igual na vida rio-pardense. Basta dizer que na edição de 20 de outubro, terça-feira, porque os jornais não circulavam às segundas, O Estado de S. Paulo dedicou ao evento páginas e páginas, não só por causa da cidade, naturalmente. De fato, naquela data, deu-se a visita do governador (candidato a presidente da República) Armando de Sales Oliveira e a entrega formal de um belo edifício construído com a participação do povo, que assinou o livro de doações, às vezes com valores de alto simbolismo, correspondentes hoje a poucos reais. Roque Cônsolo, licenciado em História pela USP, trompetista exímio, voltava ao “Euclides” como orientador educacional, logo vice-diretor e diretor, muitas vezes convocado para outras altas funções diretivas, como a chefia da Delegacia de Ensino Secundário e Normal de Casa Branca e da Divisão Regional de Ensino de Campinas. Maria José Campos, professora de Trabalhos Manuais e Economia Doméstica, foi firme orientadora de milhares de moças, que com ela muito aprenderam de organização do lar, de artes femininas, de postura, de etiqueta... Uma educadora. Aos dois, a certeza de que me dou por muito feliz com suas companhias.
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Depois de meses no puxado curso de admissão particular da Prof.ª Laudelina de Oliveira Pourrat, lá foi nossa turma de quinze ou vinte alunos enfrentar não só as durezas do exame seletivo, mas a forte concorrência de outros candidatos, oriundos até de outras cidades da região. Para entrar no ginásio, como se dizia, havia provas escritas e orais de Português, Matemática, História, Geografia e Ciências... Lá conhecemos os professores Hersílio Ângelo, Dr. Abdiel Cavalcânti Braga, Vinício Rocha dos Santos, Odilon Machado César e Dr. Neje Farah, que nos acompanhariam por muito tempo.
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O início do ano letivo de 1943 (d.C!) se deu a 1.º de março, para alegria de quem não via a hora de começar vida nova, com um jeito diferente do que se tinha vivido no Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues. Já na entrada a novidade: meninos pelo portão lateral direito; meninas pelo esquerdo; professores e funcionários pelo do meio. Soada a campainha elétrica (no grupo escolar era a sineta do seu Pedro), entrávamos em silenciosa fila pelo lado direito do pátio interno, rumo à escada que dava para o primeiro andar. Ali, as meninas iam para a classe “A”, os meninos para a “B”, da 1.ª série ginasial. Assim foi durante os quatro anos de duração do curso: salas separadas, espaços de recreio separados... Aluno apanhado escorregando no corrimão tomava suspensão, na certa. A outra escada, à direita de quem entra no prédio, tinha solenes passadeiras e por ela só transitavam os professores e pouca gente mais.
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Início das aulas: 13 horas; término: 16:50. Quatro aulas diárias de cinquenta minutos, com intervalos de dez. Nada de aulão. Disciplinas na minha 1ª série: Português (Hersílio), Geografia (Odilon), Desenho (José Germinal Artese), Francês (primeiro José Caetano de Lima e depois Dr. Mário Xavier), Matemática (Dr. Abdiel), História (Vinício), Latim (Laércio Barbosa) e Canto Orfeônico (Maria Isabel Ada Parisi), Trabalhos Manuais (com professora para as meninas e professor para os meninos, no caso Paschoal Innarelli e depois Paulo de Magalhães Machado) e Educação Física (esta no horário da manhã, para os meninos no campinho do Rio Pardo Futebol Clube, com Jorge Luís Abichabcki.) Na segunda série, entrou Inglês (primeiro com José Pimenta Neves e depois Lauro de Oliveira); nas terceira, Ciências Físicas e Naturais (Dr. Neje). E ainda (pasmem!), Instrução Pré-Militar, com certificado de conclusão e tudo! O professor era o pacífico e querido Jorge Luís Abichabcki.
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Nomes que emergem do fundo da memória: Melchisedech Genofre (diretor), Plínio Silva (inspetor federal), Elza Toledo Leme (bibliotecária), Onairda Ramalho Monteiro (secretária), Octacílio Fonseca Miranda e Iaiá de Lima (escriturários), Tito Costa (porteiro), José Franzé e Adelaide Montanheiro (inspetores de alunos), Vicente de Melo e Dionísio Possebon (contínuos). De quem terei eu esquecido?
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Entrar sem uniforme? Nem pensar. O nosso era militarizado: usávamos túnica e calças de brim cáqui, talabarte de couro preto, camisa e meias brancas, gravata e sapatos pretos. Ah, os botões eram próprios, pretos, como das fardas da polícia. Não podia faltar nem um. Não se andava com o talabarte desafivelado, menos ainda com a túnica desabotoada. Nas passadeiras dos ombros, de um a quatro risquinhos de tecido branco, indicando a série do aluno. As meninas usavam blusa branca, saia plissada azul-marinho, gravata da mesma cor, com os tais risquinhos brancos, meias brancas e sapatos pretos, fechados.
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A escola não era tão risonha e franca, como a distância no tempo e o saudosismo procuram pintar. Não se falava em bullying, mas alunos eram ridicularizados, maltratados, humilhados. Lembro-me da revolta de um colega, por antítese maldosa o Leite, que arremessou, para valer, um apagador na direção de um professor muito ferino na crítica. Meu colega José Carneiro de Araújo Filho, ainda hoje ativo aí pela cidade, uma vez lavrou frase definitiva: - A verdade é que a nossa 3.ª série deu alguns doutores e diversos presidiários...
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Tenho boa memória de tantos casos e de tantos incidentes, mas lembrarei somente uns poucos. Em 1943, nós da 1.ª série ginasial assistimos a um terrível combate com socos, pontapés, xingamentos, pedradas e até derramamento de sangue entre duas facções euclidianas: a dos ginasianos taludos da 4.ª série e a dos colegiais, primeira turma do 2.º ciclo, criado naquele ano, nas versões Clássico e Científico. Local da contenda – o interior do Jardim do Artese, então uma espécie de recreio de alunos do Euclides da Cunha, quando enforcavam aulas ou quando professores faltavam. Virou nosso herói provisório um tal Fued, baixinho, parrudo, briguento.
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Praxe nas provas parciais de junho e de outubro: a primeira questão de Português seria uma redação. Na 3.ª série, o tema dado pelo Prof. Hersílio foi a interpretação do provérbio “Em terra de cegos quem tem um olho é rei”. O até hoje espirituoso e crítico João Estevam Ribeiro Nogueira, o Zada, relembra algumas de suas glosas, que lhe valeram um caprichado zero na questão: “Na terra dos mudo, gago é espique”; “No quintal das galinha choca, a galinha que bota é rainha”; “No hospital dos paralítico, o maquitola (sic) é enfermeiro”...
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Um dia, morreu o avô do Celso. E o professor, ignorando o fato, cobrou-lhe por sorteio a tarefa de casa. - Eu não fiz. Ontem foi o enterro do meu avô. O álibi era de cabimento. - E o Sr., seu Fausto? (Era no tempo em que os mestres, invariavelmente, tratavam os alunos por “senhor”, “seu”. Uma espécie de ética parlamentar.) O Tato (professor não cogitava saber apelidos dos alunos), o Tato deve ter repassado mentalmente seu arquivo de escusas, tão manuseado. Por que sorteado ele? Sim, imperava o sorteio: tarefa de casa, sorteio; chamada oral por sorteio; sorteio para apagar a lousa; ponto de exame escolhido por sorteio! O Tato enfim achou a mais apropriada e luminosa das justificativas: - Ontem eu fui ao enterro do avô do Celso! Zero nele.
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O inspetor de alunos viu cinco ou seis saltarem de volta o muro que dá para a avenida e caírem numa espécie de valo protegido por cerrados cedrinhos. Fez de conta que nada notara, mas durante horas montou cuidadosa guarda. Até que um não aguentou mais a cãibra de tanto ficar de cócoras e se rendeu. Com ar de vitorioso, o inspetor os levou à Diretoria , onde todos pegaram três dias de suspensão.
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Estas são rememorações de meus tempos iniciais no Euclides da Cunha, período de 1943 a 1946. Por mais três anos, fui aluno do Científico e, no período da tarde, por dois, do Normal. Concluí ambos os cursos em 1949. Jamais imaginaria que, já em 1950, seria chamado pelo Dr. Abdiel, então diretor, para substituir professores de História e de Inglês. Muito menos que em 1951, enquanto me desobrigava do tiro de guerra, fosse convidado pelo Prof. Hersílio Ângelo a ser seu auxiliar nas aulas de Português. Assumi muitas classes do Ginásio e do Pré-Normal até 1953. De 1954 a meados de 1962, fiquei longe do Euclides da Cunha, exercendo o magistério em outras cidades. Para júbilo meu, pude voltar à nossa escola como professor titular de Português, numa cadeira recém-criada. Foi um longo período de muitas aulas, até quarenta e quatro por semana. De 1962 a 1983, vivi, no Instituto de Educação os melhores anos de minha vida professoral, lecionando nos cursos Clássico, Científico e Normal. Lá me aposentei do ensino público, depois de trinta e três anos de atividades.
07/10/2011
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