Euclides e as relações internacionais 

Tomada a expressão “relações internacionais” num sentido amplo,  em diversos textos euclidianos o tema é tratado até com profundidade inesperada em escritor que jamais se ausentou do seu país natal.

Não em Os sertões, um livro radicalmente brasileiro quanto ao cenário e quanto ao assunto. De estrangeiros, nele só são os autores em que Euclides da Cunha foi buscar apoio para suas teorizações ligadas ao que havia de mais atual em diversos ramos do conhecimento humano: desde Huxley, na “Nota preliminar”, até Maudsley, na última frase do livro, passando por Comte, Gumplowicz, Haeckel, Hegel, Buckle, Marx, Orville Derby, entre tantos...

A tripartição de Os sertões em “A terra”, “O homem” e “A luta” encontra respaldo teórico em Hippolyte Taine, crítico francês, para quem a obra literária  está sujeita a três ordens de fatores: o meio, a raça e o momento histórico. O mais surpreendente nessa espécie de apropriação euclidiana da trilogia tainiana está em que, publicado o grande livro, o que o autor mais quis evitar foi que se desse a ele o tratamento de obra literária. Isso explica, até, a rapidez com que ele tomou posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1903) e a falta de pressa com que chegou à Academia Brasileira de Letras (1906), embora tivesse sido eleito para as duas instituições culturais quase ao mesmo tempo.

Relações internacionais passaram a preocupação na vida e nos escritos de Euclides da Cunha a partir da aceitação do convite do barão do Rio Branco para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, em trabalho conjunto e de permanente contraposição à missão peruana constituída com igual finalidade. Merece releitura o “Relatório”, publicado em junho de 1906,  sobre a árdua missão cumprida.

Desde agosto de 1904, quando foi nomeado chefe da Comissão, até finais de 1908, quando se deu o incidente com o ministro argentino Zeballos, Euclides se envolveu prática ou teoricamente com questões internacionais, porque, de volta da Amazônia (início de 1906), sob a égide de Rio Branco continuou adido ao Ministério das Relações Exteriores, estudando documentos até seculares, interpretando textos de tratados. analisando mapas, embrenhando-se nas intrincadas questões de litígios entre o Brasil e seus vizinhos.

A propósito dessas questões de caráter internacional, escreveu os livros Peru versus Bolívia  e Contrastes e confrontos (ambos de 1907).

Em Peru versus Bolívia, tomou o partido da Bolívia, manifestando-se em artigos que desagradaram ao governo da Argentina, árbitro do litígio de limites entre os dois países sul-americanos. Como é do feitio de Euclides, seu objetivo maior era a defesa dos direitos brasileiros, plenamente estabelecidos por tratado internacional, em que prevaleceu o princípio jurídico do Uti possidetis, ou seja, o estado de posse de uma região transformado em direito de domínio em favor do país de origem dos colonizadores. O seu temor era que, pela arbitragem argentina, fatos havidos como já definitivamente resolvidos ( a questão do Acre) poderiam voltar à baila, porque o Peru desejava ter para si aquelas terras negociadas entre Brasil e Bolívia através do Tratado de Petrópolis (1903). Publicado Peru versus Bolívia, foi seu texto imediatamente vertido para o espanhol, notando-se  a veemência da argumentação euclidiana em favor da Bolívia. Criou-se incidente internacional de consequências de todo imprevistas, não fosse o tato de Rio Branco no enfrentamento do impetuoso chanceler argentino Zeballos.

Euclides faz, mesmo, a defesa exaustiva das posições bolivianas, sempre tendo como interesse maior que o Brasil não viesse a ser prejudicado. Euclides mostra-se bom argumentador, usa de adequação técnica, é sóbrio vocabularmente. Eis o fecho do livro:

Não combatemos as pretensões peruanas. Denunciamos um erro.

Não defendemos os direitos da Bolívia.

Defendemos o Direito.

 

Mas o melhor de Euclides da Cunha como pensador político, como exímio leitor de mapas, como homem de reflexão e de ação está em  alguns estudos de Contrastes e confrontos.

Lançado numa descuidada edição impressa em Portugal (Lello & Irmão), longe das vistas e das emendas inevitáveis do autor, é difícil perceber-se alguma unidade de conteúdo deste livro, constituído de artigos escritos entre 1894 e 1905, mas notadamente com material publicado na imprensa ao longo do ano de  1904.

Foi o rio-pardense Olímpio de Souza Andrade (autor da notável  História e interpretação de “Os sertões” ) quem deitou luzes sobre a integridade do livro, em minucioso estudo que abre a edição Cultrix/MEC, de 1975. Olímpio, além de determinar as datas e os locais da primeira publicação de cada artigo, fez a redistribuição da matéria constante do livro, de modo a evidenciar a unidade que lhe é própria. Diz Olímpio que assim restabelecia a vontade de Euclides, quem sabe temeroso de vê-los ostensivamente lado a lado, ainda no calor dos acontecimentos históricos a que alguns deles se referem.

Eis os itens da redistribuição efetuada por Olímpio de Souza Andrade: estudos brasileiros, assuntos americanos, assuntos mundiais, problemas do nosso tempo e cultura, arte e literatura.

Certo que é em assuntos americanos e assuntos mundiais que se vão encontrar as maiores preocupações de Euclides com as relações internacionais, mas no artigo “Temores vãos”, incluído nos assuntos brasileiros,  é que se perceberá sua acuidade na análise de temas novos e ainda de difícil assimilação pela rarefeita classe pensante brasileira. Seleciono alguns conceitos:

Numa quase mania coletiva de perseguição, andamos, por vezes, às arrancadas com alguns espectros: o perigo alemão e o perigo yankee. Nunca, em toda a nossa vida  histórica, o terror do estrangeiro assumiu tão alarmante aspecto, ou abalou tão profundamente as almas. (...) Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora. Esta última consideração é expressiva. Mostra que os receios são vãos. (...) O imperialismo

[americano]  não significa o fato material de uma conquista de territórios, senão o triunfo das atividades, o curso inevitável de um desenvolvimento industrial incomparável, e a expansão naturalíssima de um país onde um imperialismo esclarecido permitiu o desdobramento desafogado de todas as energias garantidas por um senso prático incomparável. (...) Estes perigos são claros sintomas de um perigo maior, do perigo real e único que está todo dentro de nossas fronteiras e irrompe numa alucinação de nossa própria vida nacional: o perigo brasileiro.(...) Essas nacionalidades nos assombram porque progridem e nos ameaçam pelo motivo único de avançarem triunfante e civilizadoramente para o futuro.

Dignos de releitura e reflexão os artigos “Heróis e bandidos”, “Contrastes e confrontos”, “Conflito inevitável”,  “O ideal americano”, “O kaiser”, “A missão da Rússia”... Nenhum deles, contudo, supera  jornalisticamente a interpretação pessoal que Euclides dá ao “Ideal americano”.  Aqui vão algumas frases dele pinçadas:

Roosevelt [ele fala de Theodore Roosevelt, político norte-americano de grande expressão durante a guerra hispano-americana de 1898, que chegou a presidente da República entre 1901 e 1907] é um estilista medíocre. Não escreve, leciona. Não doutrina, demonstra. Não generaliza, não sintetiza e não se compraz com os aspectos brilhantes de uma teoria: analisa, disseca, induz friamente, ensina. É o grande repetidor da filosofia contemporânea. Nada diz de novo. Diz tudo de útil. Seu último livro, O ideal americano, é uma sistematização de truísmos. Não é um livro para os Estados Unidos, é um livro para o Brasil. Os nossos homens públicos devem – com diurna e noturna mão – versá-lo e decorar-lhe as linhas mais incisivas, como os arquitetos decoram as fórmulas empíricas   da resistência dos materiais. É um compêndio de virilidade social e de honra política incomparável. A concorrência entre as nações é comparada a um vasto e estupendo football in the green: o jogo deve ser claro, franco, enérgico e decisivo; nada de desvios, nada de tortuosidades, nada de receios, porque o triunfo é obrigatoriamente do lutador que hits the line hard!

Quem imaginaria o circunspecto Euclides da Cunha fazendo-se de entendedor das regras do futebol americano, aquele jogado com pelota oval?

Está, porém, num livro póstumo – À margem da História ( 1909) – o mais completo exercício de futurologia  perpetrado por Euclides da Cunha. Deve ter sido através da leitura acurada de mapas que lhe veio à mente a antevisão de gravíssimo conflito, inevitável guerra entre os Estados Unidos e o Japão, em disputa do Primado do Pacífico:

Sobre tudo isto há um conjunto de circunstâncias naturais tão caprichoso, ou adrede disposto a um inevitável recontro dos dois mundos, que se fronteiam em uma e outra borda do maior dos maré, que o próprio quadro geográfico, naqueles lados, se nos afigura o decalque impressionador de um emocionante quadro do futuro...

A Geografia prefigura a História.

O conflito mercantil, ou militar, de qualquer modo o embate das duas raças defrontantes, terá, tudo o denuncia,a  forma inicial de uma luta entre os Estados Unidos e o Japão.

A luta, feroz, deu-se entre 1941 e 1945. Começou com o ataque de surpresa à base norte-americana de Pearl Harbor em dezembro de 1941 e só terminou em agosto de 1945, depois que duas cidades japonesas foram arrasadas por bombas atômicas.

Por tudo isso, fica explicado o sincero julgamento que o escritor Karl Schwarzwenbach, o primeiro a pôr Os sertões em língua alemã, fez dos escritos euclidianos em seus livros injustamente classificados como menores: surpreso com a profundidade do comentarista, com sua compreensão dos problemas mundiais, superando de muito o que se lê nos melhores comentários europeus da época.

07/08/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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