PESSOAIS E TRANSFERÍVEIS

 

 1.     A LEITORA

 Bela a reunião de nosso espalhada família do tronco Bertocco, em torno de um casamento. Tudo muito civilizado, a começar pelo local, uma espécie de campo neutro: hotel nas proximidades de Itu, à beira da rodovia. Gente daqui, de Itapeva, de São Paulo, de outras cidades. Além do mais, o clima de inverno mais uma vez favoreceu as pessoas, que puseram todo o esmero no vestir-se, no apresentar-se.

 

Sinto o drama do primo médico, que um dia destes completou setenta anos e por isso mesmo caiu na aposentadoria compulsória (mais justamente dita expulsória), no hospital público onde trabalhou por mais de trinta e cinco anos. Ele estava com a dura impressão de lhe ter sido arrancado um braço, uma perna, para não dizer o coração.

 

Sempre se acaba conhecendo o primo de um primo nosso, que não é nosso primo, mas que conhece uma pessoa que nos conhece. Há até um filme que trata do assunto: ninguém no mundo está separado de outro por distância maior do que seis graus.

 

E assim cheguei a conversar com uma simpática senhora, parenta dos parentes de meus parentes. E ela ficou muito surpresa ao saber quem eu era, e por motivo para mim muito raro: ela havia lido (umas quatro vezes, qualquer exagero terá sido dela) um de meus livros. E o pior (ou melhor): gostado muito. Fiquei com vontade de lhe fazer a mesma pergunta que meu sempre lembrado amigo Moisés Gicovate fez a um de seus confessos leitores: “Ah, então foi a Sr.ª que me leu?” Só lhe agradeci o informe e dei o assunto por encerrado.

 

Horas depois, vem a mim a filha de minha leitora e  diz de supetão: “O Sr. não imagina como ela gostou de conhecê-lo. Ficou até emocionada...” O que é que lhe poderia responder senão engrolar outro muito-obrigado? Gostaria de ter tido a coragem de lhe haver dito: “Muito mais emocionado fiquei eu...”

 

2.     HISTORINHA DA HORA

A rodinha de pais novos contava as peripécias dos filhos, em sua maioria na pré-escola. A mãe relatou a difícil situação de seu menino de cinco anos que, ao contrário de muitos dos seus colegas, não podia sequer pensar em acompanhar novelas de televisão, ainda mais dessas cabeludas que andam passando já em qualquer horário. Ele chegou choroso da aula e foi logo desabafando: “Mamãe, não posso mais voltar para a escola. Meus colegas caçoam de mim”... “Mas por quê, meu filho?” “Porque eu sou o único que não sabe quem matou Lineu!”

 

Eu, completamente por fora do assunto, era um dos raros adultos que também não sabia quem havia matado Lineu... Também fui caçoado.

 

3.     FELIZ RECONHECIMENTO

Estávamos todos muito formais no salão de cerimônias, à espera da entrada da noiva, quando sinto um puxão nas calças e a presença da menininha de menos de dois anos, à procura de meu colo. É a neta Alice, a sétima. Está toda enfeitada e arrasta com certa pose uma bolsinha da mãe. Ela é de 17 de outubro de 2002 (como passa o tempo!) e ainda fala muito pouco. Explica o pai dela: “Na minha família é assim mesmo. As mulheres custam a falar, mas depois que começam, não param nunca...”

 

4.     SAUDADE BRAVA

No domingo pela manhã, fui dar uma caminhada pelos arredores do hotel e encontrei um sujeito sem frio algum, que passeava solitário e desabrigado. Tínhamos trocado algumas palavras na festa do casamento. Conversa vai, conversa vem, ele me declarou: “Olhe, talvez nunca mais nos encontremos, mas preciso lhe dizer uma coisa. Neste momento, o que eu quero mesmo é voltar rapidinho pra São Paulo e ver se chegou alguma notícia de minha namorada. Nós estamos vivendo uma situação difícil...” Nada mais ele me disse, nada lhe perguntei. Prestei mais atenção a meu eventual companheiro de caminhada e vi que ele já estava bem longe da juventude, não tanto quanto eu, é verdade. Seu coração, contudo, continuava jovem e aberto à (a)ventura da vida. Viva o amor!

 

5.     SINALIZAÇÃO PRECÁRIA

Com os preços escorchantes dos pedágios nas rodovias paulistas, a sinalização deveria ser muito mais precisa. Deveria seguir um princípio básico – destinar-se a pessoas que não estejam habituadas a determinado trajeto. Quem o conhece não precisa de informação alguma.

 

Na volta para casa, ao invés de refazer o caminho por Indaiatuba e Viracopos, resolvi do hotel cair direto na Bandeirantes ou na Anhangüera, mesmo sabendo que a distância seria um pouco maior, mas evitando entrar em Itu com ruas tão antigas e enfrentar uma estradinha estreita, muito acidentada. Pois bem, a certa altura lá estava a indicação “Rodovia dos Bandeirantes”. Não tive dúvida e entrei, mas desinformadamente  peguei a mão que ia para São Paulo, não para Campinas. Precisei rodar mais de dez quilômetros para encontrar um retorno. Ou seja, perdi tempo e dinheiro, porque não havia na estrada secundária (também com pedágio) as indicações que se esperariam: entrada para São Paulo, entrada para Campinas. Isso a uns prudentes quinhentos metros dos respectivos acessos. Fácil, não?

 

6.     SEMANA EUCLIDIANA CHEIA DE EMOÇÕES

Para mim, com algumas atividades relevantes:

·   No dia 9, enfrentar de novo o público euclidiano mais experimentado,  em palestra sobre assunto de certo modo perigoso e original – comparar a macrovisão de Euclides em Os Sertões e a microvisão de Graciliano Ramos em Vidas Secas. Nos dois o mesmo tema, quem sabe resumível a isso: a submissão do homem ao meio que o circunda;

·   no mesmo dia 9, testar o coração no recebimento do muito raro título de Cidadão Emérito de São José do Rio Pardo, que a Câmara me concederá por haver aprovado proposta do vereador José Rueda;

·  no dia seguinte, participar da sessão de saudade em memória de Hersílio Ângelo, a mais recente e muito sentida perda do euclidianismo rio-pardense.

 

 07/08/2004
(emelauria@uol.com.br)

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