Modernidade líquida e incerta É polonês, tem oitenta e cinco anos e cara de velho, mesmo. Não cuida dos raleados e compridos fios de cabelos brancos nem das sobrancelhas em desalinho. Deixou-se fotografar de muito perto, o que, na sua idade, é temerário, porque ficam evidenciadas não só as rugas profundas, mas o olhar baço, típico de quem está cansado de ver coisas. Respondeu por escrito a questões propostas pelo suplemento Sabático, edição de 1 de maio. Chama-se Zygmunt Bauman e é o autor do conceito sociofilosófico de modernidade líquida, que propõe dar um entendimento do instante atual, em que velhas maneiras de fazer as coisas já não funcionam, mas novas maneiras de lidar com a contemporaneidade ainda não foram inventadas ou sequer configuradas. Segundo ele, nós nos encontramos num momento de “interregno”, não sabemos quais formas e configurações existentes precisam ser “liquefeitas” e substituídas. Estamos reagindo ao último problema que se apresenta, e tateando no escuro. Pensou-se, por exemplo, em diminuir a poluição pelo dióxido de carbono desmantelando-se as usinas termelétricas. Para substituí-las, ergueram-se usinas atômicas, mesmo pesando sobre o mundo o espectro de Chernobyl, esquecido durante um quarto de século. Espectro de repente ressuscitado em grandíssima escala com o recente desastre japonês de Fukushima, a cidade com problemas de vazamento nuclear. Homens, animais, plantas e até a água – tudo envenenado. Diz que todos os homens, em todos os recantos do planeta, são modernos, porque as formas de vida moderna podem diferir em muitos aspectos, mas o que as une é sua fragilidade, fugacidade, seu pendor para câmbios constantes. Ser moderno significa “mudar compulsivamente”. Não tanto “ser”, mas “estar se tornando”, permanecendo incompleto e subdefinido. Resume tudo isso com a frase: “Cresce a convicção de que a mudança é a nossa única permanência. E a incerteza, a nossa única certeza”. Essa situação põe em xeque até os privilegiados detentores de sólida formação superior, que frequentaram as mais caras instituições acadêmicas do mundo, lá se alimentando de esperanças de prêmios cintilantes que as próprias universidade acenderam e inflamaram. Ao invés desses vitoriosos já programados, os novos bilionários, de Steve Jobs, fundador da Apple, ao inventor do Twitter, Jack Dorsey, e ao fundador da Tumbir, David Karp (de que jamais ouvi sequer falar), -- todos abandonaram os estudos. Esse Karp bateu o recorde: não passou um dia em universidade alguma. Mal chegou ao primeiro ano da high school (escola de ensino médio). Bauman sintetiza tudo isso assim: “Um bom diploma foi por anos o melhor investimento de pais em seus filhos; esta crença está hoje abalada”. Em suma: se ficar, o bicho come; se correr, o bicho pega. Ou vice-versa.
No final de abril e começo de maio, você e eu tivemos mil motivos para ficarmos grudados nas poltronas, frente à TV: futebol (Real Madri vs. Barcelona um dia sim e outro também, Santos e São Paulo, Corinthians e Palmeiras); casamento real – a vitória do arcaico, de valores em baixa e seu desfile de excentricidades em roupas e chapéus; beatificação de João Paulo II, com a queima de todas as etapas de longuíssimo processo, que por vezes chega a séculos. Ignorei com certo desdém as bodas principescas, porque os nubentes já têm mais tempo de convívio conjugal do que a maioria dos casais moderninhos: oito anos, prazo mais que suficiente para rir, para chorar, para sentir fortes emoções e tédios profundos. Dei-me por muito satisfeito com as condensações que pude ver em noticiários menos repetitivos e me certificar de como há, em todo o mundo e em todas as latitudes, pessoas de nenhum senso de ridículo. Estava até inclinado a encarar a longa cerimônia da beatificação de João Paulo II, tanto que lá pelas nove da manhã de domingo procurei o canal 106, da RAI, onde pensei que me livraria de más traduções e de comentários dispensáveis. Minha irmã logo me jogou na real: tudo tinha sido muito cedo, começando antes das seis da matina. A respeito de João Paulo II, uma unanimidade universal, evoco dois pequenos fatos:
É que, em outubro de 1964, com 26 anos, recém-ordenado sacerdote católico, Etienne Samain estudava no Colégio do Santo Espírito, da universidade belga de Leuven, “onde religiosos do mundo todo buscavam alimento para o intelecto e para a fé”, conforme as palavras de Christian Carvalho Cruz, autor da reportagem em que me baseio, publicada no Aliás, de 1 de maio. O favor prestado foi que Karol lhe pediu por empréstimo um par de sapatos novos, número 42, de bicos largos -- exatamente do mesmo tamanho que ambos usavam. Os de Karol, quem sabe de fabricação russa, estavam encharcados e quase desmanchando. Depois de usar o produto belga, o arcebispo voltou ao quarto do padre para lhe devolver o calçado, mas Etienne insistiu em que ficasse com ele, como presente. Foi aceito. Após esse pequeno e desimportante incidente, a vida correu diferente para o padre belga e para o arcebispo polonês. O padre dependurou a batina em 74, casou, criou filhos adotivos, enviuvou e nunca mais manteve sapatos sobressalentes. O arcebispo foi eleito Papa e revolucionou o mundo, a ponto de lhe ser atribuída grande parte da impossível façanha – derrubar o muro de Berlim e esfacelar a União Soviética. Bem que o ex-padre quis manter contato com o Papa. Chegou a lhe enviar, durante sua primeira visita ao Brasil, um par de sandálias nordestinas, mas nunca soube se elas foram recebidas. Agora Wojtyla merece as honras dos altares e Etienne acha, com evidente exagero,que o catolicismo é como uma fogueira que está se apagando. Segundo ele, há cinza demais cobrindo uma única brasa enfraquecida. Daí a velocidade na beatificação do mais querido Papa de que se tem notícia. Pergunta cheia de veneno que faz ao padre belga o repórter campineiro: - E se eu te disser que Bento XVI está ali no portão, todo molhado, querendo saber que número você calça? - Bem, acho que ele vai se resfriar.
Ingenuidade pensar que o terrorismo fanático se extinguirá ou mesmo se atenuará com a morte de Osama Bin Laden, abatido depois de caçado por quase dez anos. Sempre haverá aqueles que, em nome de uma pretensa guerra santa, exerçam da pior maneira o direito de vingar a vingança da vingança da vingança. Sim, é do próprio presidente norte-americano a frase de que com a liquidação de Bin Laden, consumou-se a justiça contra os que provocaram a tragédia do ataque aéreo às torres gêmeas, a 11 de setembro de 2001. Dieu le veut – Deus o quer, bradavam os cavaleiros medievais, enquanto decapitavam, estripavam ou flechavam os infiéis. Há quem acredite que Osama Bin Laden será mais perigoso morto do que o foi vivo.
07/05/2011
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