BENEDITO/BENTO

Tinha a esperança, quase a certeza, de que a questão do nome escolhido pelo novo Papa seria levantada por algum aluno meu no decorrer da semana de sua eleição. Engano ledo e cego: nada foi dito, nada foi perguntado e o assunto acabou perdendo na aparência a sua atualidade.

            Felizmente, existe nesta cidade um local que reúne curiosos e perguntadores de toda espécie – o CCBF, quer dizer, Centro Cultural Batista Folharini. Seja para colocar alguém em apuros, seja por ociosidade, o tema foi afinal posto em discussão e eu jogado na fogueira, como professor.

            E , desconfortavelmente recostado ao balcão, dispondo apenas de um pedacinho de papel para eventuais anotações,  pude falar um pouco sobre essa erudita questão de um papa chamar-se Benedictus em latim, Benedetto em italiano, Benedict em inglês e Bento em português.

            Avisei à distinta e reduzida platéia que se tratava de um caso clássico de formas divergentes, o que nada acrescentou ao entendimento de ninguém. Expliquei tudo da melhor forma que pude e saí de com a não sei se enganosa impressão de ter dirimido aquela dúvida tão candente.

            Não repetindo a singeleza da explicação então dada, enfrento aqui o problema, na ilusão de ser do aproveitamento de mais alguém interessado em coisas  cada vez mais distantes de nossas escolas de qualquer nível.

            O latim, língua dos romanos e de uso universal por largo tempo, teve  ao menos duas vertentes bem distintas: a clássica e a vulgar.

            O latim clássico (sermo classicus) foi a língua das pessoas cultas, dos oradores, dos escritores, dos filósofos romanos. Muito mais escrita do que falada, não foi a vertente que acabou impondo-se em todos os imensos territórios  conquistados pelo Império Romano, que em seu auge abrangeu toda a Europa Ocidental. O latim falado pelos soldados, pelo povo simples, tanto em Roma quanto nas regiões conquistadas, era o popular ou vulgar (sermo vulgaris).

            As chamadas línguas românicas ou neolatinas (português, espanhol, italiano, francês, provençal, romeno e algumas outras de menor significado atual) são o produto da longa e peculiar evolução do latim vulgar, estropiado pelos soldados e funcionários a serviço de Roma,  originários de regiões diversas e diferentemente influenciado ao contato com as línguas faladas pelos povos conquistados. Antes, porém, de  se transformarem nas línguas neolatinas, cada uma delas viveu um estágio intermediário chamado romance ou  romanço, que não era latim, mas ainda não português, espanhol, etc. Em algumas regiões militarmente conquistadas pelos romanos em que não se deu a formação de um romanço, não surgiu também uma língua neolatina. São os casos da Inglaterra e da Alemanha: seus territórios chegaram a integrar o Império Romano, mas os idiomas inglês e alemão não são neolatinos. Essas duas línguas se enriqueceram de vocábulos latinos, mas a estrutura de suas frases não é latina.

            Mas vamos ao centro da questão: do latim clássico passaram para muitas línguas, incluído o português, milhares de palavras que mantiveram nítida semelhança com a forma latina original. Do latim vulgar também provieram outros milhares de vocábulos que deram em português outras palavras de feição nitidamente popular. Assim, temos:

Benedicere (forma erudita) da qual se derivam em português bendizer e benzer. O particípio deste verbo latino é benedictus, em português bendito. Por uma via popular, criou-se em nossa língua outro particípio do  verbo benzer: bento.  As duas formas de particípio – benedito e bento--  passaram a ser empregadas como nomes próprios masculinos: Benedito e Bento. Isso quer dizer que Benedito e Bento significam a mesma coisa: louvado, celebrado, bendito, abençoado.

            Por longa tradição, preferiu-se traduzir em português o nome dos papas Benedictus por Bento, quando a forma usada poderia ser Benedito, mais próxima do termo latino.

            Criou-se em nosso povo a falsa idéia de que Benedito é popular e Bento erudito. É lingüisticamente o contrário... Benedito é também criação muito mais antiga, exatamente por se assemelhar ao termo latino erudito.

            Na Igreja existem vários santos cujos nomes tanto podem ter a forma erudita  (Benedito) quanto a popular (Bento). Um deles, fundador de ordem monástica (um dos ramos é o dos cistercienses) chamou-se São Bento. O adjetivo referente a ele é beneditino... Paciência beneditina expressa uma qualidade desses monges da regra de São Bento...

            Assim também se emprega Benedita, Benta e bendita, todos os termos da mesma origem. Benedita como nome de pessoa;  Benta como nome de pessoa e como adjetivo (vela benta, água benta); bendita como tradução de benedicta, como se reza na Ave-Maria...

            Em suma: o nome latino tomado pelo novo Papa em português poderia mesmo ser traduzido por Bento, dada a longa série de  quinze outros pontífices homônimos, através dos séculos. A Bento corresponde em italiano Benito e em francês Benoît forma esta  empregada para designar os nomes dos papas que em latim se disseram Benedictus.

            Darei mais alguns exemplos de formas divergentes. É de se observar que a de feição popular é sempre mais curta, porque resultado de muitas modificações fonéticas que obedeceram a uma importantíssima lei, a do mínimo esforço. Apresentarei grupos de três palavras,  na seguinte ordem: forma latina forma portuguesa erudita forma portuguesa popular:

Affectione – afecção afeição

Cardinale – cardinal cardeal

Coagulare – coagular coalhar

Computare – computar contar

Cognatu – cognato cunhado

Cogitare – cogitar cuidar

Hereditariu – hereditário herdeiro

Recitare – recitar rezar

Masticare – mastigar mascar

Parabola – parábola palavra

Auricula - aurícula  - orelha.

            Menos freqüentemente ocorreu o fenômeno contrário, a convergência: de várias formas latinas surgiu um único vocábulo português, com diversos sentidos, descobertos pelo contexto:

São tem três origens, dependendo do significado: verbo ser; adjetivo = sadio; adjetivo = santo.

Vão – do verbo ir; inútil; espaço vazio

Livro volume de leitura; verbo livrar.

 

Nada coisa alguma; verbo nadar.

            Terminando de forma amena: quantos não conhecem aqui nesta cidade um simpático cidadão pleonasticamente chamado BENEDITO BENTO?

 

07/05/2005
(emelauria@uol.com.br)

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