Dois temas de ficção
O celular achado Se você estivesse passeando despreocupado numa praça qualquer e ouvisse nitidamente o toque de um telefone celular que parecia sair de um tufo de folhagens, você procuraria localizá-lo e atenderia ao chamado? Como sei o fim desta história, eu o aconselharia a deixá-lo tocar até que a bateria descarregasse. Sei que você e a maioria dos passantes daquela praça qualquer não sossegariam enquanto não o encontrassem e não falassem com quem estivesse chamando. Foi o que aconteceu com Sebastião G. de O., rapagão de bem com a vida, no auge da mocidade. Depois de alguma busca, achou o celular que tocava e logo foi dizendo “alô”. Do outro lado, uma doce voz feminina explicou, cheia de desculpas, que o celular era dela e que seu filho de treze anos o perdera no caminho do colégio e telefonara de lá para a mãe, comunicando-lhe a perda. - Pois é, eu o achei, minha senhora. Nem sei o que fazer com ele. - Onde é que o senhor o encontrou? - Aqui na Praça das Árvores... - Sei onde é. É mesmo caminho de meu filho, todos os dias. Seria muito trabalho para o senhor (ou o chamo de você?) trazê-lo aqui em casa? É relativamente perto. - De você, minha senhora, de você. E onde é que a senhora mora? E ela lhe deu o endereço, dizendo ainda que o orientaria até ele acertar com a casa. E mais: ele não precisava chamá-la de senhora. Bastava “Jacqueline”. Ah, as insinuações daquela voz quente e veludosa... Assim foi. Perguntando sempre onde Sebastião estava, a voz de Jacqueline ia orientando-o. “Agora dobre à direita. Caminhe mais duas quadras”. - Pronto. Já o estou vendo daqui da janela de meu quarto. Quando ele chegou em frente à casa, ela informou: - Olhe, a porta de entrada está apenas encostada. Pode vir sem medo. Se o Sebastião não fosse tão curioso e se lhe faltasse certo gostinho pela novidade com vaga promessa de aventura, aquela teria sido a boa hora de ele deixar o celular num lugar qualquer da casa, porque já havia cumprido sua benemérita missão de entregar à legítima dona um objeto perdido, sabe-se lá como. Se fosse tão maduro e precavido assim, não haveria nem esta história. - Por favor, estou aqui no pavimento de cima e tenho muita dificuldade de locomoção porque fui operada recentemente. Então lhe peço esta última gentileza: atravesse a sala e o corredor comprido e deixe o celular desligado na cômoda do quarto que fica em frente. Meu filho vai ficar surpreso quando o encontrar ali. E assim Sebastião fez. A porta do quarto indicado estava semiaberta e ele entrou confiante, disposto a acabar logo com aquela incomum situação, ainda mais prestando um favor a Jacqueline, que estava convalescendo. Mal teve tempo de colocar os pés naquele aposento e logo deu com uma cena de horror. Numa ampla cama de casal, estava um homem de meia idade, com profundo ferimento na garganta e todo esvaído em sangue. Morto, sem dúvida. Sebastião, sem fôlego nem para gritar, saiu dali correndo, esquecendo-se inteiramente do celular. Na calçada, quase derrubou uma babá que vinha toda tranquila empurrando um carrinho de neném; nem escutou o xingamento de um senhor idoso, que se viu atropelado por aquele “animal selvagem que não respeita ninguém”.
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Enquanto isso, a suave Jacqueline ligava anonimamente para a delegacia de polícia do bairro e anunciava um assalto na casa situada na rua tal, número tal, crime cometido, ao que tudo indicava, por um rapagão moreno, forte, alto, que fora visto correndo em fuga ali pelas imediações. Cumprida esta formalidade, Jaqueline saiu da casa, carregando apenas uma valise, cheia talvez de jóias, dólares, euros e reais. Nada mais se soube a respeito da imaginosa dama do celular.
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Sebastião nunca foi molestado por nenhum investigador. Passou muitas noites sem dormir, sempre revendo na memória a trágica cena do velho degolado. Durante muitos meses não se atreveu a sequer andar pelas ruas daquele sossegado bairro de classe média alta.
Perfil de amigo próximo do ideal Que fosse uma pessoa calma. Que essa calma houvesse sido polida mais pela ausência de felicidades que pela fartura delas; houvesse surdido das terras férteis de emoções ante as artes, esculpida pelo cinzel do sofrimento consciente e grato... Não uma calma própria da personalidade, da genética, uma simples e normalíssima calma que encontramos num siamês, mas uma paz profunda que só identificamos no olhar, intenções e gestos. Que fosse uma pessoa culta. E que sua cultura não descesse à insanidade da erudição, da empáfia, do pedantismo. Culta apenas por haver elegido o conhecer não como meta, mas meio infindável de absorção de saberes, de amor ao conhecimento. Que transcendesse aos bens materiais. Que a modéstia lhe marcasse o caráter, mas que nem de longe transparecesse subserviência. Que fosse assertiva. E que essa firmeza no falar se desse pela dicção de veludo. Firmeza e suavidade! Que soubesse com maestria exercitar a arte de ouvir. Que por dons naturais decodificasse no primeiro enunciado as analogias mais sutis que a alma do interlocutor pudesse emitir. Que por empatia penetrasse no mais profundo de meu sentimento e identificasse de igual modo minhas dores da alma e meu júbilo da vida. E que todas essas qualidades não houvessem sofrido qualquer tipo de estímulo alucinógeno, mas que fosse a mais legítima extensão de seu caráter. Nenhuma pergunta, nenhum jogo de cena, nenhum forçar a ir por este ou aquele caminho. Que optasse pela fluência natural da conversa, com as devidas pausas e delicadezas, como só um suavíssimo canto gregoriano nos leva às alturas do pensamento limpo e puro. Assim, talvez, eu lhe revelasse o que me vai na alma. E depois, como discípulo atento e grato, tornar-me-ia seu ouvinte na mesma amplidão... E em vez de debate, no lugar do calor das palavras, a opção pelo diálogo sincopado, pensado, inteligente, raso de palavras, altíssimo de significados. Só assim nossas almas se entrelaçariam, sem que necessariamente houvesse o viés tão comum e às vezes banal do amor e da paixão.
07/04/2012
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