Babel em noite calma-- Então vamos hoje ao cinema, na sessão das nove. Fazia tempo que não íamos. Também, com os filmes que passam e com a juventude da platéia, interessada em tudo, menos no que vai na tela, a presença do renitente casal de velhos é destoante. Já que iremos ao cinema, hábito em rápida extinção, façamos tudo diferente: vamos a pé. E lá fomos nós, em tempo folgado, escalando a subidinha da Várzea, imperceptível por tanto anos, mas agora uma barreira que dia por dia se avoluma. Depois, o altiplano, o lento caminhar no passo burguês de quem faz a digestão. Andamos pela Rua Marechal Deodoro, lembrando o que era aqui e quem morava ali. De um carro, um olhar admirativo ou um aceno amigo. Como não se espantar com dois velhinhos flanando pela cidade em quinta-feira abafada? Ali, onde muito antigamente era o Banco F. Barreto (matriz em Mococa e filial única em São José), entramos na Treze de Maio, atentos ainda ao o que era aqui, quem morava ali. Assim, chegamos ao Colombo, estranhando o nenhum movimento à sua frente. -- Já terminou a primeira sessão? -- Já. -- Muita gente para a próxima? -- Até agora entrou uma pessoa... Cinema está fraco em todo lugar. Teriam mudado a programação? Não. O filme era mesmo Babel, com Brad Pitt e Cate Blanchett à frente. Vencedor de um mundo de prêmios, citação obrigatória entre os lançamentos do ano. Uma delícia sentar-se onde se quer, sem ninguém por perto, sem grupinhos em intermináveis papos furados, comendo pipoca e bebendo refrigerante. Tudo é diferente e nítido no filme. Seu diretor, o mexicano Alejandro González Iñárritu, mostra desde o início ser muito bom na condução de três dramas que se entrecruzam a partir de um acidente. Arriscou tudo e desconstruiu para reconstruir à sua maneira as vidas unidas pelo desfecho de uma história que, à semelhança da Babel bíblica, lida com as várias línguas em que se expressam seus personagens -- inglês, espanhol, árabe e japonês, e joga com as muitas leis do acaso e da probabilidade, neste nosso mundo a um tempo muito desigual e muito igual. Babel começa no Marrocos, numa casa onde dois meninos recebem do pai, criador de cabras, uma arma comprada para matar os chacais que podem dizimar o rebanho. Esta arma é o ponto de entrecruzamento das histórias. A arma e o dano que causará. Duríssima a vida dessas crianças marroquinas, que só têm à sua volta a aridez do deserto. Neste mesmo cenário está, em ônibus turístico com ar condicionado e outros confortos, um casal americano (Brad e Blanchett), que na tentativa de se recompor conjugalmente vai ao Marrocos em excursão de luxo. Em San Diego, na Califórnia, estão os dois filhos do casal, deixados aos cuidados da fiel empregada mexicana, vivida por uma notável atriz, Adriana Barraza. A terceira e inesperada ponta da trama é uma garota, surda-muda e órfã de mãe, que mora em Tóquio com o pai. A história dessa garota é quase outro filme. Ela, uma adolescente japonesa, esbarra com rebeldia em sua deficiência física como algo limitador de sua liberdade sexual e no conflito com o pai. Como lhe diz uma amiga: todo o seu mau humor se acabará quando ela conseguir concretizar o ato amoroso com alguém.
Um tiro disparado por um dos meninos marroquinos atinge a mulher americana no ônibus de turismo. Aí o casal conhecerá a precariedade da assistência médica local, a mórbida curiosidade do povo e a completa falta de solidariedade dos outros passageiros do ônibus, das mais diferentes nacionalidades. Brad Pitt e sua mulher são deixados numa infecta aldeia, à espera de socorro que acabará vindo por helicóptero, depois de angustiante espera. Que efeito confortador um cigarrão de haxixe oferecido por uma velha feiíssima à mulher baleada! A empregada mexicana precisa participar do casamento do filho na cidadezinha dela, poucos quilômetros além da fronteira. Não tem com quem deixar as duas crianças americanas sob sua guarda e resolve levá-las consigo. A festa de bodas é de um colorido e de uma vivacidade de comover. Tudo tão perto dos Estados Unidos e tudo tão mexicano. Um festival de breguices, de bebedeiras, de sensualidade. Sente-se no ar um clima que muito se aproxima de coisas brasileiras. Os meninos marroquinos e seu pai são descobertos pela polícia. A volta da mexicana e das duas crianças para os Estados Unidos, em carro dirigido por motorista bêbado, é frustrada pelos órgãos de imigração na fronteira. As crianças quase morrem, perdidas no deserto, e a mexicana tem seu pior castigo: deportada dos Estados Unidos, depois de quatorze anos de feliz clandestinidade. E o pai japonês? Ele foi quem deu de presente a arma que atingiu a americana. Deu de presente a seu guia numa caçada. O guia a vende ao pai dos meninos... Complicado? Nem tanto, porque o resumo fica fácil: as grandes conseqüências de pequenos atos isolados, provando como o mundo ficou pequeno e os homens vítimas fatalistas de meros acasos. A moral de tudo é que, enquanto na Babel bíblica a ambição de construir altíssima torre que mostraria a Deus a capacidade desafiadora dos homens é derrotada pela confusão das línguas, na Babel contemporânea pode-se ter um recado positivo: o sofrimento une os homens de diferentes raças, credos e latitudes e cria momentos de comovedora confraternização, como a do intérprete marroquino, dedicadíssimo ao casal de americanos, que se nega decididamente a aceitar a grossa recompensa em dinheiro que lhe é oferecida; ou a digníssima atitude de um policial japonês que se recusa em plena consciência a se aproveitar da carência afetiva da desarvorada adolescente, sedenta de afetos. Ao fim e ao cabo, os marroquinos guardadores de cabras pagam muito caro pelo disparo que um deles fizera contra o ônibus. A mulher americana, bem tratada num hospital de Casablanca, recupera-se do ferimento a bala e acaba vendo seu casamento fortalecido na dor e na provação. As crianças americanas são resgatadas do deserto e se lembrarão pela vida toda não só das privações por que passaram, mas principalmente da alegria que tão intensamente viveram nas poucas horas do casamento mexicano. A adolescente japonesa se reconcilia com o pai viúvo e distante. A doméstica mexicana volta a contragosto para sua aldeia de origem, onde, a título de consolação, espera-a ansioso um reencontrado amor da juventude. Saímos do cinema atordoados com a fluidez e originalidade do filme de mais de duas horas, baseado num bom texto, mas seguramente fruto da inspiração de um diretor com seu complicado sobrenome de origem catalã (ou seria basca?) . Dá muito que pensar, dá para vê-lo outra vez, provavelmente num DVD que, se não saiu, não demorará a estar disponível. Vivemos de novo a rara sensação de ter visto um filme que, usando todas as possibilidades atuais de som e de imagem, resgatou a boa idéia que sempre fizemos do cinema.
Não posso imaginar o que pensaram as outras quatro pessoas que nos fizeram silenciosa companhia naquela sessão especialíssima. Quanto a nós, foi reconfortante, depois de tudo, sentir a noite amena, o céu limpíssimo e o luar de quase Semana Santa.
07/04/2007 |