Da memória afetiva (II)

(Foco em 1941-42)

 
O velho e o novo.

 

JORNAIS DA TERRA

Havia dois:

Gazeta do Rio Pardo – semanário de propriedade de Valêncio Bulcão, seu diretor-redator-revisor-repórter. Funcionava com oficinas próprias na Rua João Pessoa, nas proximidades de onde hoje está o Maga Hotel. Por vezes a falta de assunto (ou de curiosidade)  fazia o jornal sair com página em branco.

Resenha – de circulação irregular. Aparecia no seu frontispício como proprietário o polêmico Paschoal Artese, mas sabia-se que os comentários mais ardidos ou irônicos eram de autoria do filho Germinal, depois nosso professor de Desenho. Ficou famosa uma ilustração dele a respeito da qualidade da água que a cidade consumiria, retirada do rio Pardo. Para Germinal, a população passava a beber  caldo de defunto... Em lugar de destaque havia duas frases latinas: Labor omnia vincit (o trabalho tudo vence) e Vitam impendere vero (dedicar a vida à verdade). Por anos a fio, o jornal de Artese reclamou  em vão, num texto estereotipado,  a instalação de uma Faculdade de Farmácia e Odontologia  criada no papel pelo governo estadual.

 

VIAGENS

DE TREM

Viajava-se quase que só de trem. Passavam rumo a Casa Branca três deles – às oito  e pouco da manhã, às 11:17 (!) e à meia-noite e alguns minutos. Outros iam a Guaxupé, Passos,  Mococa. Lembro-me de ter ido de trem a Mococa (por terra são uns vinte quilômetros) em  duas horas. A composição era mista – vagões de passageiros e vagões de carga. Fazia-se baldeação na estaçãozinha de Ribeiro do Vale.

Para se ir a São Paulo, baldeava-se em Campinas e tomava-se um trem elétrico de causar inveja pela velocidade e limpeza. Ou era da Paulista ou da Inglesa (SPR – São Paulo Railway). A duração de uma viagem de São José a São Paulo era perto de nove horas.

Meu avô César Bertocco ia constantemente a Poços de Caldas, em busca de alívio para seu reumatismo. Tomava o trem aqui, ia até Cascavel (hoje Aguaí), baldeava, passava por São João da Boa Vista e chegava a Poços (hoje menos de sessenta quilômetros por Divinolândia) depois de umas seis horas de viagem, tudo pela Companhia Mogyana de Estradas de Ferro!

 

VIAGENS

DE JARDINEIRA

Para quem não sabe, jardineira  era um pequeno ônibus de bancos inteiriços, com  portas laterais, por onde os passageiros entravam e saíam. Não havia estação rodoviária, de modo que essas jardineiras faziam ponto em  diferentes lugares da cidade. De trás da Matriz partiam as jardineiras da empresa que ligava São José a São Sebastião da Grama, Vargem Grande do Sul e São João da Boa Vista.. As que demandavam  Mococa, Guaxupé, Guaranésia faziam ponto na frente de um  bar da Rua Marechal Deodoro que  com o tempo se transformou na  primeira estação rodoviária da cidade. Para o Sapecado havia as jardineiras de passageiros comuns e as destinadas ao transporte de tuberculosos que aqui chegavam de trem e iam ser internados  num sanatório situado no vasto prédio onde está hoje o  hospital mantido pela Unicamp. Havia ainda jardineiras para Itaiquara, Tapiratiba e Caconde. Jardineira parava em qualquer lugar do percurso, conforme sinal do passageiro que ia embarcar ou desembarcar.

 

SORVETE

FEITO EM CASA

Foi por esse tempo que pela primeira vez vi uma geladeira doméstica, notável aparelho  que, além de conservar alimentos, podia fazer sorvete, tendo para isso umas forminhas de metal mantidas sempre no congelador. Um avanço de causar espanto e inveja, acessível apenas  a famílias  ricas, como a de uma tia minha, Mercedes Bertocco, casada com Lourenço Scali, bem-sucedido comprador de café. Não esqueci a marca da geladeira – Norge,  de fabricação sueca.

 

AS CADEIRAS 

BICHADAS

De março a novembro de 1942, além das aulas do grupo escolar, frequentei  um curso particular de  admissão no ginásio, mantido pela Prof.ª D. Laudelina  em sua residência, na Rua Benjamin Constant, onde  meu primo Hermenegildo Bertocco teve consultório de dentista. As carteiras  eram rústicas  e as cadeiras mais ainda, daquelas com assento de palha de milho trançada.  Meu companheiro ao lado era Flávio Trevisan. Usávamos ainda calças curtas e de repente nossas pernas começaram a coçar, a arder, a empipocar. Pouco demorou para descobrirmos as causas do geral desconforto:  os assentos das cadeiras estavam  tomados de percevejos! Sim, percevejos marrons, espertíssimos, que andavam daqui para ali, sem a menor cerimônia.  No final da aula, Flávio se encheu de coragem e mostrou aquilo tudo a D. Laudelina, que ficou muito sem graça e muito aborrecida. Ela, zelosíssima da ordem e da limpeza... Imediatamente pediu que  nós levássemos todas as cadeiras para o quintal da casa. Sem dizer palavra, juntou-as, jogou álcool ou gasolina nelas e tocou fogo. No dia seguinte, sentamo-nos em cadeiras novinhas, com assentos de palhinha sintética. D. Laudelina jamais voltou ao assunto. Nós também não.

 

ONDE COMPRAR

A cidade dispunha de boas casas de comércio, como a Braghetta,  ao lado da igreja: vendia de quase tudo;  a Nascimento, da Rua 13 de Maio, um casarão cuja ponta restaurada hoje é uma bela floricultura;  a Feira do Mercado, de Gabriel Gervásio & Filhos, sem dúvida o maior armazém de secos e molhados.  Nós, da Várzea, tínhamos à disposição a Casa Vigorito ( R. Silva Jardim, n° 1) e a Casa Della Torre, de João Borges, na Praça Prudente de Morais. O comum era comprar-se  de caderneta, com todos os fornecimentos marcados a tinta e geralmente pagos uma vez por mês. Isso se o freguês não fosse caloteiro ou não ficasse pulando de loja em loja.

Ia-se muito ao Mercado Municipal, aquele tipo de navio até hoje  ancorado na Praça Barão do Rio Branco, então um local sem ajardinamento ou arborização. Para dar mais nítida impressão de navio, as paredes externas do prédio eram bem baixas, parecendo mesmo amurada de embarcação.

Batiam de porta em porta os verdureiros, os vendedores de frangos e ovos, os leiteiros. Quem podia comprava dois ou três litros de leite in natura, guardado em  um latão e medido com canequinhas de um ou meio litro. Quem podia menos, levava só meio litro bem raso, para as crianças. Adulto não precisava tomar leite.

 

MELHOR

EXPLICANDO

Tudo que escrevi nestes dois artigos sobre os anos de 1941 e 1942 estava mesmo retido em minha lembrança. À medida que os fui rememorando, acrescentei comentários, referências e conclusões que não podiam, mesmo, ter passado pela cabeça de um menino de nove ou dez anos. Este aperfeiçoamento da visão de coisas tão remotas é a função básica do memorialista.

 

07/03/2015
emelauria@uol.com.br

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