Muito antigamente
· AS LENHEIRAS É de minha mais remota infância a lembrança de mulheres que enfrentavam o penoso trabalho de buscar lenha. Talvez passasse intuitivamente pela cabeça delas a noção que o Direito Romano abrigara: uma coisa que se desprende naturalmente de outra será de quem a achar. Ora, na chácara do Carneirinho havia uma bela mata cujos galhos secos eram objeto do desejo daquelas mulheres pobres. Lá iam elas a pé, levando apenas um grande pedaço de pano, com que faziam uma rodilha, espécie de amortecimento para os pesados feixes de lenha que traziam na cabeça para suas casas. Era como mantinham os fogões acesos a baixíssimo curto. Fogão a gás? Nem pensar. Isso foi conquista de algumas décadas depois.
· SERVIÇOS DOMÉSTICOS DE OUTROS TEMPOS Mesmo não precisando ir buscar lenha na mata, muitas mulheres dos anos trinta e quarenta tinham ao menos de fiscalizar a execução de alguns serviços caseiros hoje felizmente extintos, como rachar lenha, torrar e moer café, fazer pães e roscas. Quando na casa de meus pais chegava a carroça com a lenha bruta encomendada, era preciso chamar um sujeito forçudo que, com machado e cunha, ia tornando mais leves e finos aqueles toros que alimentavam o fogão. Bem me lembro de ter ajudado a torrar café e a moê-lo depois. O cheiro de tudo aquilo ficou entranhado no mais fundo da memória. Também posso rever-me na subidinha da Várzea equilibrando na cabeça um tabuleiro coberto com um pano branco. No tabuleiro estavam umas tantas roscas feitas por minha mãe, iam ser assadas no grande forno a lenha da Padaria Alleman, de Carlos Frigo, ali no comecinho da Rua Benjamin Constant, onde é hoje um posto de combustíveis.
· CASA SÃO PAULO, DE TUFFY BOULOS Sabe a ponta da esquina do Supermercado São João? Ali por décadas foi o escritório de uma grande firma, a E. Vicente Nasser & Irmão, concessionária da General Motors, dos veículos Chevrolet e da linha Frigidaire de geladeiras. Quase ninguém se lembrará desse escritório e da oficina de montagem de refrigeradores comerciais. Uma vez, na Pousada do Rio Quente, em Goiás, tive o prazer e o susto de ver no hotel um enorme balcão frigorificado com o plaqueta metálica da fabricante, a Refrigeração Nasser, de São José do Rio Pardo, SP. Pois eu me lembro do que havia antes do Nasser na atual ponta do São João: uma loja de tecidos, a Casa São Paulo, de Tuffy Boulos. Vi a demolição da velha casa e a particularidade que muito me impressionou – suas paredes não eram de tijolos, mas de pau a pique, um rudimentar sistema que unia barro e pedaços de madeira. Coisa pra lá de antiga.
· GIM MARIN E AS LUVAS Lembro-me de ter ido, já faz alguns anos, ao velório de Luís Marin, o Gim, meia-esquerda de um belo time amador do Rio Pardo Futebol Clube de anos passadíssimos . A linha atacante era Tricoline – Luisinho – Rolando – Gim – Capitão. Pois bem, de repente veio a proposta tentadora, que mexeu com a vida de Gim Marin: a Associação, rival do Rio Pardo, lhe oferecia um belo contrato com ordenado mensal e luvas de alguns milhares de cruzeiros, um dinheirão. Gim topou a dura parada, jogou muito tempo pela Associação e desgostou não pouca gente do Rio Pardo, que ainda não compreendia o novo espírito que iria definir a melhor época do futebol rio-pardense. Final inesperado e revelador: Gim quis que seu caixão fúnebre fosse coberto com a bandeira do Rio Pardo.
· O QUINTAL DOS PEREIRAS Aqui na Siqueira Campos, quase esquina da Itororó, houve um casarão de paredes de taipa, assoalho com tábuas larguíssimas e forro de taquara trançada. Tenho em lugar incerto e atualmente não sabido uma foto desse notável marco na vida da cidade, provavelmente sede de uma fazenda que se urbanizou lentamente. A última etapa dessa urbanização é a Vila Pereira toda, com certeza o bairro que mudou a cara da própria cidade. O autor da foto histórica é meu amigo Anselmo de Oliveira Andrade, um Pereira da Silva pelo lado materno. Muitas vezes entrei naquele casarão, até para ler jornal para D. Júlia, a filha cega da matriarca Presciliana Pereira da Silva. Vi lá dentro, em vários cômodos, uns pedaços de madeira fortemente fixados à parede, onde arreios eram dependurados. Vi ainda uns mancebos, armações com diversos cabides que serviam para guardar roupas. A cozinha era maior do que um apartamento de hoje. Todo o terreno em que se ergueu o estádio da Associação era parte do enorme quintal. Ainda hoje, casas que conheço na Rua Itororó têm jabuticabeiras produtivas que num passado remoto pertenciam ao espaçoso quintal dos Pereiras.
· O BANCO DO BRAZIL Foi quando nós morávamos num sobrado (hoje substituído por um prédio de apartamentos) na Treze de Maio que tive contato com a palavra escrita. Levado por Ricardo Simonetti, amigo da vida toda, lá fui eu em fevereiro de 1939 (lá se vão 76 anos!) ter aulas no Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues. Bem que ali pertinho do sobrado estava em construção o segundo grupo escolar, provisoriamente instalado no belo casarão da família Soares, mas preferi o grupo de cima. Na calçada da alfaiataria do pai do Ricardo, o Sr. Antônio Simonetti, defronte ao Hotel Brasil, estava escrito com ladrilhos pretos: Banco do Brazil. Foi então que tive minha primeira das muitas dúvidas ortográficas: Por que Hotel BraSil e Banco do BraZil? Levei a questão à minha primeira professora, D. Cândida, que mais me atendeu do que esclareceu: - É, meu filho. Nossa língua tem muito dessas coisas... Escreva BraSil, ouviu? E deu por encerrada a consulta. O que eu não podia imaginar era que três quartos de século depois, essas coisas de nossa língua materna ainda são motivo de discussões e arranca-rabos. Entre nós é o falsamente polêmico jeito de escrever o nome de escritor famoso: Euclydes ou Euclides? Há pouco fiquei sabendo que até existe um decreto municipal determinando que a ponte metálica se chame Euclydes da Cunha, como se matéria ortográfica não fosse objeto de tratados internacionais e sim de infundadas decisões locais. Piraçununga, Mojiguaçu, Mojimirim, Moçoró, Bajé, por exemplo, são as grafias corretas que as próprias cidades abominam. Quem tiver dúvidas, procure no vocabulário ortográfico atualizado da Academia Brasileira de Letras os adjetivos a elas referentes. Acharão piraçununguense, guaçuano, mojiano, moçoroense, bajeense, apesar das opiniões em contrário. Portanto, fico com Euclides, euclidiano, euclidianismo. Ainda não vejo validade na forma euclidianista.
07/02/2015 |