As sete maravilhasTenho certeza de quer só por ler este título, algum atento leitor dirá lá consigo: “Lá vem reprise!” – E é verdade. Se a televisão pode (até a cada vez mais repetitiva tevê paga), por que não eu, neste começo de ano em que cidade, sob chuva constante, vive ainda a ressaca de tantos réveillons, com muitos profissionais tirando folga, com ruas desertas, restaurantes às moscas, clubes inativos, lojinhas abrindo tarde as portas – quando abrem? O texto é de 1987, publicado no livro Nós, os nossos, alguns intrusos, de 1997. Ora, como poucos leram o livro (como é duro vender livro, especialmente sem ilustrações e sem causos locais!), é de se esperar que membros remanescentes de meu seleto leitorado do DEMOCRATA o tenham esquecido, quando não sido vítimas de coisa muito pior, como finar, ir desta para melhor, terminar os dias, entregar a alma ao Criador, para não usar o prosaico e neutro, afetivamente falando, verbo morrer. Sim, porque não temos tido dia sem velório de amigo, conhecido, gente de todas as idades. Mas transcrevo o texto: Carregada de presságios a voz do funcionário, ou apenas impressão minha? É que, no meio de uma aula, fui interrompido com o recado: -- Telefonema de São Paulo. -- Deram o nome? -- Deram, mas não guardei certinho. Parece Isaura, mas não é. Consultei mentalmente o arquivo onomástico e não encontrei nenhuma Isaura. Lembrei-me, isto sim, da letra de um velho samba feito de encomenda para Francisco Alves cantar as vantagens do trabalho sobre a malandragem carioca: “Ai, ai, ai Isaura, hoje não posso ficar...” Alguém aí também sabe isso de cor? Então deixei a classe, cortando a explicação sobre um tema qualquer, desses que acabam enriquecendo o acervo de cultura inútil de algum raro aluno que não passe logo um apagador sobre quase tudo quanto ouviu na escola. “Não há assuntos desinteressantes, mas ouvinte desinteressados”, resumiu puxando para sua sardinha o Chesterton. Agarrado a tão confortador pensamento, desci os quarenta e tantos degraus que medeiam entre o terceiro e o primeiro pavimento, esforçando-me em vão por localizar uma Isaura que me telefonasse de São Paulo direto para a Faculdade. Não posso negar nem a expectativa, nem a apreensão. Morte? Doença? Desastre? Cobrança? -- Alô! -- Você sabe as sete maravilhas do mundo antigo? Foi assim, de supetão, sem intróito, que minha amiga de voz inconfundível, quase Isaura mesmo, me cobrou uma noite destas. E antes que eu pudesse demonstrar algum conhecimento sobre o assunto, sem dúvida palpitante e atualíssimo, ela atalhou: -- Cinco eu sei. As pirâmides do Egito, o farol de Alexandria, o colosso de Rodes, os jardins suspensos da Babilônia, o, a... Não sabia nem os cinco na ponta da língua. Contribuí com uma: -- O túmulo de Mausolo em Halicarnasso. (Espantei-me da lembrança, porque isto devia estar armazenado num canto poeirento da memória, desde quando eu usava calças curtas.) -- Como é? -- O túmulo do rei Mausolo na cidade de Halicarnasso. Daí é que vem a palavra mausoléu. -- Hã! Tem certeza? -- Tenho. -- Bom, agora só falta um. Já telefonei para Fulano, mas está dormindo. Beltrano disse que não sabia, e pronto. E preciso disso para agora. Explicou os motivos de tanta premência do saber histórico, que não me convenceram, parecendo-me antes cuidados de tia dedicada. -- Se você quiser, eu consulto alguma enciclopédia aqui na Faculdade e lhe telefono logo mais. -- Muito bem, eu aguardo. A caminho da biblioteca, encontrei um colega versado em muita ciência e lhe perguntei esperançoso: -- Você sabe de cabeça as sete maravilhas do mundo antigo? Tive de repetir a questão, porque ele achou que era começo de piada envolvendo o Sarney, ou trote, ou coisa assim. Ele não sabia mais que três. Na biblioteca fiz a mesma e severa indagação a outro colega, que ali estava pesquisando. Ele ficou um tanto vermelho por não saber também mais do que quatro. Aí fui à Delta-Larousse que explica: segundo Filão (Fílon) de Bizâncio, são as pirâmides, os jardins suspensos, o colosso, o farol, o túmulo em Halicarnasso, a estátua de Júpiter atribuída a Fídias e o tempo de Ártemis em Éfeso. Alem das maravilhas em si, ainda aprendi a pronúncia Ártemis (que conferi em casa), nome de uma deusa invicta e hoje com acento no tê, marca de roupas íntimas femininas. Pressuroso (a palavra é meio pedante mas insubstituível para externar meu ânimo de prestar pequeno favor a uma amiga), pressuroso liguei para ela. Ocupado. Mais três ou quatro tentativas, e o telefone sempre ocupado. Era a quase Isaura recorrendo incansável a outras fontes, em busca de alguém que, às dez da noite de uma segunda-feira de 1987, soubesse, sem nenhuma hesitação, as sete maravilhas do mundo antigo. Por precaução, datilografei as tais maravilhas numa folha, que passo a carregar comigo. Fiquei sabendo a respeito delas pormenores de notável erudição, de que dou apenas dois exemplos: chama-se De septem orbis miraculis o opúsculo em que Fílon de Bizâncio arrola as obras-primas da arquitetura e escultura que excitavam a admiração universal; Halicarnasso, hoje Budrum, é cidade antiga da Ásia Menor. Não mais serei apanhado de surpresa em problemas momentosos e transcendentais. Como cabiam no papel, acrescentei os sete sábios da Grécia, as sete pragas do Egito, os sete pecados capitais. As sete notas musicais, não. Um homem prevenido...
Até aqui o texto de 1987, rapidamente envelhecido por alguns detalhes: 1. A ligação não foi feita de celular para celular. 2. Eu disse que datilografei (e não digitei) o texto. 3. Consultei uma enciclopédia e não uma página da internet. Só o Google dá hoje em dez segundos a respeito das sete maravilhas nada menos do que 23.800.000 (vinte e três milhões e oitocentas mil) referências. 4. Que escola pede pesquisa desse tipo a seus alunos de hoje? E para quê?
07/01/2006 |