NO
BOLSO DO
CAPOTE
Isso de
querer
tratar
jocosa e
familiarmente a
morte está entranhado na
tradição
milenar dos
povos. É a
forma
óbvia de
esconder o
medo.
Lembram-se do
conto “Gaetaninho” do
ótimo António de Alcântara
Machado? O italianinho
surdo foi
buscar a bola-de-meia chutada
lá
para o
meio da
Rua
Oriente e o
bonde o atropelou.
Que disseram os
meninos
que jogavam
com
ele e
tudo presenciaram? Alguma
palavra de
amizade
ou
pesar? Alguma
prova de
susto
ou de
estima?
Não e
não.
Só
isso:
—
Sabe o Gaetaninho?
—
Que é
que tem?
—
Amassou o
bonde!
Quincas
Berro d’Água,
um dos
velhos
marinheiros de Jorge
Amado, teve a
morte e a
morte,
porque
seus
amigos,
por
motivos
que
não vêm ao
caso,
nem perceberam a
primeira e verdadeira.
Explica o
autor,
logo no comecinho: “Até
hoje permanece
certa
confusão
em
torno da
morte de Quincas
Berro d’Água.
Dúvidas
por
explicar,
detalhes
absurdos,
contradições no
depoimento das
testemunhas,
lacunas diversas”.
Baptista
Folharini teve,
pois,
muita
razão
em
não
dar
crédito ao
telefonema recebido
completamente
fora de
hora. Avisaram-lhe o
mais
rápido
possível
que José Carlos Merlo, o cavalão,
tinha morrido de
infarto.
Um
pouco
mais desperto, Baptista telefonou
para o
filho José Fernando,
que,
sempre
muito
bem assessorado
por
entidades de
gabarito, achou
prudente
indagar,
também
por
telefone:
—
O Sr. pode
informar se o Sr. José Carlos Merlo está
aí no
hospital?
—
Está e está
morto,
bem
morto, esclareceram-lhe
com
exatidão do
outro
lado do
fio.
Pronto,
já
não havia
dúvidas.
E
dizer
que no
domingo (tudo
aconteceu na
madrugada de
sexta-feira) José Carlos iria
festivamente
receber o
diploma da
Ordem dos
Cavaleiros da
Ferradura e a
comenda Accacius Romanorum --
brincadeira
pacienciosamente urdida
entre os frequentadores
mais
contumazes da revistaria Folharini (pai
e
filho)! O
título
lhe serviria
como
prova do
público
reconhecimento
por
relevantes
serviços no
campo da
cultura e
por
sua
incomparável
fineza e
elegância
nos relacionamentos
com
seus
semelhantes, os
asnos!
Tudo
isso está explicitado
em italiano num
documento
cheio de
lacres,
fitas,
firmas reconhecidas,
dado e
passado
em San Giuseppe del Fiume Biggio, il
primo
Augusto duemille due... Assinam a
peça de
imensurável
valor Hermenegildo Raddi Bertocco (secretário);
Renato Giorni (=
Dias) Gonçalves (curador
da
comenda); Márcio Giuseppe Lauria (chanceler
da
Ordem); Giuseppe Carlo Uccello (Pinto)
Nunes (tesoureiro); Giovanne Zadda (decano)
e Baptista Fogliarini (presidente da
Ordem e capo di tutti i capi, à boa
maneira
napolitana ).
Por
trás de
tudo, o Batistinha –
atento aos
trâmites – e a
eminência
parda, a
figura bem-humorada,
judiciosa de Vladimir Massaro.
Num
papel à
parte,
em
texto
bilíngüe, é apresentado o
quadro de
normas
para
ser
um
cavaleiro da
ferradura:
1.
Ser
mal-educado ao
extremo.
2.
Aceitar as
brincadeiras e
retribuir os
elogios.
3.
Ser
brincalhão e
tirar
sarro das
pessoas.
4.
Ter
pelo
menos
um
par de
ferraduras
para a
reunião.
5.
Já
entrar na
reunião xingando,
para
que os
confrades possam acalmá-lo...
Que
me lembre,
jamais os idealizadores e
signatários da
comenda chegaram a reunir-se
em
sessão
plenária.
Cada
um passava
quase diariamente
pela revistaria à
hora
que desse e ficava informado de
tudo
que se referisse à
instituição
através do
Batista e do Batistinha. O
almoço de
domingo, 8 de
dezembro, seria a
primeira
ocasião
em
que se esperava quórum
total,
além de
alguns
penetras
convidados
por
alguém do grupinho.
A
morte de José Carlos,
além da
consternação dos
amigos e
familiares,
já causou ao
menos
um
bom
fruto
imediato:
todos os
comes e bebes do
tal
almoço foram
parar numa
instituição de
caridade.
Seu
velório,
apesar de
muito concorrido,
nem foi
triste.
Enquanto permaneci
por
lá, ouvi boas
gargalhadas, típicas das rodinhas masculinas
em
ocasiões
assim.
Já se levantaram diversas
hipóteses
pouco ortodoxas
sobre as verdadeiras
causas da
morte de José Carlos Merlo,
infartado e safenado
reincidente. A
mais contável é esta,
com
certeza do
desagrado de Ewaldo Muradi, a
qual, a
bem do
rigor esperado, sinto-me na
obrigação de
registrar,
ainda
mais
que José Carlos,
mal informado das
coisas,
só
me tratava
por historiador:
Depois de boa
comida e de boa
bebida, José Carlos pediu a
dolorosa. À
vista da
alta
soma
ali consignada,
ele levou o
maior e o
último
susto da
vida, caindo de
bruços
sobre a
mesa, mortinho da silva. Foi atendido
prontamente (sempre
há
um
médico na Stufa
ou
adjacências),
mas
em
vão. Ao
que
tudo indica, José Carlos
nem chegou a
quitar a
conta. Mandam as boas
regras de
cavaleiros
que
Batista
ou Batistinha o faça,
em
nome da
nascente
confraria.
Um
particular
com José Carlos:
—
Você exagerou na
brincadeira ao
morrer de
verdade,
quase na
véspera do
almoço
que
selaria boas
amizades
entre
pessoas
que
vão de
livre
vontade a
um
lugar
sem
nenhum
conforto
para
conversar
sem
maiores
compromissos, podendo
sempre
dizer o
que pensam e julgando-se preparadas
para
contestações
pouco elogiosas,
para
comentários
irônicos,
para
conclusões
que
nada têm
com os
assuntos
em
foco.
Pessoas de
diferentes
idades e
diferentes
níveis de
aspirações e/ou
realizações
que,
paradoxalmente, ao se armarem, desarmam-se
para
depois tomarem
cuidado
extremo:
sair daquele
lugar
ora
ameno,
ora
agitado,
sempre caminhando de
costas,
por
não confiarem no
que as possa
atingir
com
palavras ásperas e
gestos
pouco
amáveis. Fique
aqui, José Carlos,
nossa
surpresa e
nosso
protesto
pelo
modo
pouco educado de
você
não
ir ao
almoço arquitetado
com
tanto
esmero e culinariamente conduzido
por D. Eunice.
Além da
entrega da
comenda e do
diploma,
você teria de
tomar
conhecimento de
vasta
correspondência recebida
até do
exterior. Seriam lidos:
—
e-mail de congratulações de
Domingo Cavallo,
direto de
Nova York;
—
ofício de
cumprimento do
Jóquei
Clube de
São Paulo:
—
telegrama da
Sociedade Protetora de
Animais;
—
manifesto
coletivo dos moradores da
Rua do
Hipódromo, Mooca.
************
A
título de
melhor
compreensão do
tema da
morte, transcrevo algumas
frases, todas de
muito boa
procedência:
1.
A
morte
não
chega de
favor,
não
toca a
campainha,
não se anuncia
por
carta,
nem
por
telefone:
ela está
em
nós,
completamente.
Um
dia descobrimo-la,
como
algo
que esquecemos no
bolso do
capote.
2.
Não se fale dos
mortos, a
não
ser
para
dizer
bem.
3.
O
Sol e a
morte
não podem
ser encarados
fixamente.
4.
A
morte é a
curva da
estrada.
Morrer é
só
não
ser
visto.
Todas
elas têm
donos. Esta
última,
por
exemplo, é de Fernando
Pessoa.
07/01/2005
(emelauria@uol.com.br)
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