Dos pedidos constrangedores

 

Vai dizer que já não aconteceu de você ter recebido uma solicitação de estragar o dia, a semana toda.

Ora é um sujeito que você mal conhece e que chega com ares de familiaridade, dá tapinhas em suas costas e acaba  perpetrando a maior facada. Ele precisa, porque precisa, de cem reais. E você, só você  é suficientemente amigo dele para entender a situação e morrer com cem pratas, com cinquenta, ao menos.

Um dia destes perguntei a uma pessoa de meu conhecimento,  logo depois de eu ter sido achacado em uma dessas emergências, se ela podia me responder a uma simples pergunta:

- Eu tenho cara de rico?

A tal pessoa nem sabia direito o que me responder, porque não tinha a mínima noção das minhas  intenções.

Então expliquei a ela que em certos dias  me escolhem como vítima preferencial: sou o sujeito talhado no capricho para morrer de facadas fictícias. Um precisa inteirar o valor de uma passagem de ônibus para Caconde ou Itobi; outro precisa comprar um botijão de gás e dos quarenta e dois reais de custo lhe faltam cinco, seis; este precisa comprar um remédio para a sogra; aquele  precisa nem sei o quê.

Ela entrou no clima de minha pergunta e me devolveu:

- Pensando bem, com sua careca, sua barriga, seus mais de cem quilos de peso, zanzando por aí, se olho para você não há como pensar num mendigo, num passador de fome... Você lembra, mesmo, uma pessoa sem apertos financeiros.

Então deve ser isso. Como dizem: todos veem os uísques que bebo, mas ignoram os tombos que levo.

 Um dia recebi a visita de um rapagão forte, bem-apanhado que já havia feito uns serviços aqui em casa. Só pelo jeito cerimonioso dele, pensei comigo “aí vem facada!”. E veio.

- Sabe o que é? Deve ser de seu conhecimento que eu sou casado, tenho dois filhos, mas as coisas não deram certo, mudei-me daqui, arranjei outra mulher... Agora, a mãe de meus filhos  entrou na Justiça reclamando alimentos.

(A mãe dos meus filhos – que expressão triste! A mãe dos filhos deve ter sido outrora muito amada, mas tudo mudou com o tempo.)

- Agora recebi uma intimação. Se eu não pagar os atrasados pra ela, até hoje à tarde,  o rapaz que me entregou o papel me disse que eu pego cadeia. É verdade isso?

- É verdade, sim.

(A lição do Direito estava no fundo da memória: na lei brasileira, há raros casos de prisão civil por dívida – entre eles a falta de pagamento de pensão alimentícia.)

- Então... Acontece que não tenho nem um real pra dar a ela. E só tenho o senhor a quem recorrer.

- Oitocentos reais? E só eu? Nenhum amigo, nenhum parente? Nem pra dividir?

-Oitocentos reais. Meus amigos e parentes são mais duros do que eu, mas o senhor pode ficar sossegado que eu lhe pago tudo, tudinho...  Nem que seja a prestações.

- Veja a dificuldade: se eu não pago, vou preso. Se vou preso, deixo de trabalhar, e aí então é que a dívida aumenta. Mas pode ficar sossegado que lhe pago tudo, tudinho... Em poucos meses acerto tudo com o senhor, isso eu lhe prometo de coração.

E assim, pude inscrever o nome do rapagão na minha lista não tão pequena de pessoas que me devem alguma quantia e que juraram pagar rapidinho, rapidinho.

Já faz mais de cinco anos isso.

Mas pedidos constrangedores não são apenas aqueles que doem no mais sensível órgão do corpo humano – o bolso.

Já fui alvo de outras solicitações muito estranhas. A do sujeito que me escolheu para ser o seu procurador na tentativa de refazer um rompido caso de amor. E a do amigo que, tendo tido a premonição da morte, deixou à sua mulher umas recomendações muito precisas sobre seu velório e sepultamento. Queria ser velado num asilo espírita, enterrado num esquecido túmulo da família. Não sem antes  ouvir apenas as sinfonias de Beethoven. O que me cabia neste rol de últimas vontades: ser o fornecedor  de todas as sinfonias.

Hoje, passado tanto tempo, tenho condições de informar meus leitores sobre o andamento de ambos os casos.

Não tive nenhum sucesso na mediação amorosa, mas por circunstâncias alheias à minha intervenção o casal voltou às boas, está junto, passando, é claro, por usuais chuvas e trovoadas. O solicitante já chega perto de  mim sem se lembrar do que me pediu.

Meu bom amigo, tragicamente assassinado, teve o velório que almejou, ouviu (suponho) por horas e horas as nove sinfonias de sua predileção. Isso graças a meu filho eletrotécnico e hoje promotor. Foi enterrado num estragado túmulo, logo restaurado e recoberto por nobilitante mármore branco. Muito discreta  a inscrição que sua viúva mandou colocar sobre a pedra tumular.

Não fica por aí a minha variedade de pedidos constrangedores.

Um amigo dos mais chegados certa vez me solicitou apenas um conselho: estando metido (disse-me ele que injustamente) numa situação vexatória que envolvia  terceiros e terceiras, precisava ajustar um bom advogado, desses bons de verdade, capazes de meter medo no colega da parte contrária, porque ousados nas iniciativas e surpreendentes nos argumentos.

Logo me veio à mente um  nome brilhante, daqueles bem tarimbados, conhecedores da lei, dominadores do vernáculo, de bela presença física e voz de barítono.

Quando pronunciei o nome do Márcio Thomaz Bastos local, meu amigo fez cara de desânimo:

- Mas ele não vai aceitar minha causa...   

- E por que não?

- Nós somos de políticas contrárias. Nossos avôs  já  não se bicavam...

- Não tem problema. Se você me autorizar, vou falar com ele.

- Você faria isso por mim?

- Faria não: farei.

E lá fui eu falar com o causídico, que me recebeu cortesmente.

Expliquei-lhe a situação, o constrangimento do amigo. Ele foi incisivo:

- Você pode tranquilizá-lo . Se acertarmos o valor dos honorários, ele terá em mim um advogado cuidadoso e dedicado.

E assim foi, ignoro a que preço. A tática adotada pelo  ilustríssimo seria a do fogo de encontro: tomar a iniciativa das ações,  dar nova versão aos fatos, rebater antecipadamente os argumentos dos adversários e   oferecer ampla publicidade de tudo.

Explicou-me que muitas causas são perdidas porque os envolvidos querem tapar o sol com a peneira, ao invés de reinterpretar o ocorrido. Daí o então único jornal da cidade ter trazido na edição do domingo seguinte, em primeira página, uma peça jurídica daquelas, em que meu receoso e acossado amigo foi retratado na inteireza de cidadão honrado e pai de família dos mais conceituados.

O nobre defensor dos fracos e oprimidos foi tão bem-sucedido em sua empreitada, que o processo morreu na fase policial.

Ora, alguém perguntará se depois disso o cliente e o advogado se   tornaram bons amigos. Nem pensar. Nenhum dos dois quis.

 

06/12/2014
emelauria@uol.com.br

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