Tempo e destempo
Beira rio
Um veterano limpador de quintais
costumava dizer a meu
pai:
-
Ponha sentido, seu
Carmo, nos doze
primeiros
dias deste mês.
Conforme chover
no dia primeiro,
choverá em
janeiro; chovendo no dia
dois,
não faltará água
em fevereiro,
e assim
por
diante.
A
verdade, porém, é que as
previsões dos
antigos
sobre o tempo
há muito deixaram de
ter
a anunciada e decantada eficácia. Nem
as pontadas no
calo
de estimação ou no
braço
fraturado asseguram com um mínimo de certeza como
será o comportamento das
águas, dos trovões, dos
relâmpagos, dos ventos. Minha
finada mãe tinha a
ilusão
de adivinhar chuvas
de acordo
com
as fases da Lua,
até
que a televisão
começou a exibir imagens tiradas de satélites,
mostrando frentes
frias
gigantescas, movimentos continentais de nuvens,
centros de alta
ou de baixa
pressão, tudo
enfim que
roubou das pessoas as arraigadas
crenças
de que a
chuva, boa e mansa,
ou
brava e amedrontadora, se formava
por
aqui mesmo,
bem ali atrás do morro
do Cristo;
que
céu pedrento queria infalivelmente anunciar chuva ou vento.
Um dia, assim de brincadeira,
fiz menção dessa
frase
– céu pedrento,
chuva
ou vento –
e ouvi inesperado
acréscimo,
também originário
da sabedoria
popular:
chuva
ou vento ou qualquer outro tempo...
É isso.
Quem
acertou, mesmo, foi Cecília
Meireles ao escrever sobre as estações perplexas.
*
Gostei muito de ter ido, isso já
faz muitos anos, aos festejos das bodas de ouro de Sérgio
Gumercindo e Nazaré. Ele, meu colega de grupo escolar, objeto de minha
santa inveja por causa das elaboradas
barrigueiras que fazia com barbantes
coloridos nas aulas de trabalhos manuais
de Dona Laudelina.
Vizinhos
fomos por mais de meio século, além de
companheiros
de Câmara Municipal
por
uns anos. O celebrante lembrou não só o trabalho de Sérgio na
construção e manutenção
da igreja dos
Reis
Magos, das
tradições
folclóricas a eles relacionadas, mas trouxe a público
outro fato
de causar inveja não
só a mim,
mas a outras
vítimas de imbatível obesidade:
o terno e o
sapato
de casamento do Sérgio serviram
tanto
para as comemorações das
bodas
de prata
quanto
para as das bodas
de ouro! Corpo
de bailarino
espanhol. (Ai, meu
terno
azul-marinho de casamento
que fim levou depois
de aposentado por
absoluta
impossibilidade de uso, mesmo após uns tantos alargamentos?)
*
Velho companheiro nosso
me confessou meio
em segredo,
ali mesmo naquela igreja, que
dentro de uns dias
também
completaria cinquenta anos de casado, mas não faria festa
alguma. Adaptou ao seu caso pessoal a batida história
da mulher
que
lembrava ao marido:
- Meu bem, domingo é aniversário
de nosso
casamento. Vou matar
um
frango para o
almoço.
O marido, mais que depressa,
atalhou:
-
Que culpa tem o frango?!
Ele, engraçadinho, dormiu uma semana no sofá.
*
Tratando de assunto menos sério, revelo que
li em poucos dias um livro de
quatrocentas páginas – Quando Nietzsche chorou. Leitura
absorvente (mas
tão
dura quanto
mastigar pedras),
que
não pretendo comentar
com intuito
de análise
ou
de crítica.
Nem
direi o nome do
autor,
um desses
professores
universitários
americanos
que conseguiu reunir
dois mundos incompatíveis na aparência - o do
conhecimento
científico e o da
capacidade
de criação ficcional. Todo o livro gira em torno de um encontro hipotético
entre Joseph Breuer, mestre de Sigmund Freud e
pioneiro
da psicanálise,
com Friedrich Nietzsche, o filósofo criador do mito
do super-homem, da
hegemonia
da raça ariana.
O importante, mesmo,
será saber por
que ele
teria chorado, apesar de toda a sua carapaça de conhecimento
e pretensa
fortaleza
interior. E por
que foi? Quem
quiser saber que
enfrente as quatrocentas páginas
e conclua, se puder, como eu concluí, que as coisas realmente importantes
na vida jamais
perdem sua
simplicidade.
*
Fábula sempre atual é a do escorpião que precisava de carona
para atravessar um rio. Pediu a um, pediu a outro
animal e nenhum
queria levá-lo às costas, com medo de sua picada mortal.
Teria sido o cavalo que por fim
resolveu prestar-lhe o favor,
apesar
das advertências
em
contrário? Ou
o cachorro?
O argumento do escorpião
tinha sua
lógica:
- Por que eu iria picá-lo, se eu
também morreria se você
morresse na travessia?
E assim foi. Em dado momento,
provavelmente no final do trajeto, o escorpião
deu sua
picada. O ingênuo e envenenado
cavalo
(ou
cachorro?)
ainda lhe
indagou surpreso:
- Mas como? Você me garantiu que não me picaria...
A resposta do escorpião
é antológica e atemporal:
- Que posso fazer? Picar é de minha natureza...
*
Algum dos cada vez mais raros velhos leitores de boa memória poderá
estar comentando com seus botões: “Eu conheço esse escrito não sei de
onde”. Pura verdade, foi aqui mesmo que ele leu uns pedaços que hoje
reproduzo.
Trata-se do que se chama assunto requentado.
06/08/2016
emelauria@uol.com.br
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