Os sertões, hoje

 

 

Honra-me sobremaneira  a convocação do artista plástico  Otoniel Fernandes Neto para que eu exponha ao leitor de hoje algumas das razões que fazem do livro Os sertões, de Euclides da Cunha, obra atual e de alto impacto no pensamento social, político  e literário do Brasil.

Antes de tudo, uma palavra de reconhecimento à capacidade de Otoniel de captar com a mente e com o coração  e expressar pelas tintas  o que a leitura do grande livro lhe suscitou. Só mesmo alguém de talento incomum e com  perfeita integração no estilo de vida nordestino poderia imagisticamente traduzir a visão euclidiana das paisagens, das pessoas, dos conflitos dramáticos ocorridos no sertão da Bahia, no final do século XIX. Sua coleção de  vinte e nove quadros sobre Canudos encontra-se hoje na Casa de Cultura Euclides da Cunha, de São José do Rio Pardo, graças à doação da  Nestlé – Companhia Brasileira de Alimentos.

Mandado, em 1897, como correspondente de guerra do jornal O Estado de S. Paulo a Canudos, Euclides da Cunha acompanha de perto os últimos dias da resistência dos seguidores de Antônio Conselheiro às forças federais. Da observação direta dos fatos e dos profundos estudos dos homens e das paisagens da agreste região, nasceram  Os sertões,  livro a que dá forma definitiva em São José do Rio Pardo, onde dirigiu como engenheiro os trabalhos de reconstrução de uma ponte metálica, emborcada pelas águas caudalosas do rio Pardo, pouco tempo depois de inaugurada.

Providencial que tivesse podido Euclides lançar âncora em porto calmo para estudar, meditar e escrever, com os vagares que até então desconhecia.

Chegado a São José do Rio Pardo, mal iniciara Euclides o livro por ele mesmo classificado como “vingador”. É de crer-se que trouxesse prontas, mas à espera de suas revisões sempre substanciais, apenas as páginas sobre “A terra” e algumas de “O homem”, uma sexta parte do livro, se tanto. E mesmo trechos constantes do artigo “Excertos de um livro inédito” (O Estado de S. Paulo, 19 de janeiro de 1898) sofreram radicais transformações redacionais. É o que se verifica com o antológico estudo sobre o “sertanejo”, submetido a  comparação minuciosa pelo escritor rio-pardense Olímpio de Sousa Andrade, em sua brilhante História e interpretação de “Os sertões”.

De apreciável formação científica, era Euclides carente de maior bagagem literária – circunstância justificável num engenheiro de formação militar. Foi nesta nossa cidade, por volta dos trinta e poucos anos de idade,  que Euclides se embrenhou pelos clássicos portugueses, revelando preferência por Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco. Do grande Padre Antônio Vieira, assimilou técnicas de composição presentes  no sermão vieiriano “O Estatuário” e visíveis na confecção da figura material  do seu “Judas-Ahsverus”, de À margem da História, quem sabe a mais elaborada página de toda a obra euclidiana.

Amigos não lhe faltaram em São José do Rio Pardo, dentre todos avultando Francisco Escobar, mineiro de Camanducaia, que chegou a intendente de nossa cidade, à época da residência de Euclides (1898-1901). Jurista provisionado, poliglota, executante de piano e flauta, ao doutíssimo Escobar (no dizer exigente de Rui Barbosa) coube a missão de incentivar o irrequieto Euclides da Cunha a prosseguir na elaboração de Os sertões, malgrado as canseiras da reconstrução da ponte. Com Escobar, ou através de Escobar, obteve Euclides preciosos informes, incluída a possibilidade de consultar obras raras (como a Flora brasiliensis, do naturalista Von Martius, doada à biblioteca da vizinha Casa Branca por D. Pedro II). Não faltou ainda sua assistência para Euclides escrever em severa observância às leis invioláveis da língua...

À margem esquerda do rio Pardo, a cerca de cem metros acima do local onde emborcara a primitiva ponte, ocupou Euclides, como improvisado escritório,  uma barraca de sarrafos e folhas de zinco, sombreada por paineira de forma estranha, como que a proteger com espalhada e retorcida ramaria a rude construção. Um verso de Shakespeare escrito a zarcão à entrada da cabana expressava por certo a perplexidade do engenheiro ante o desabamento da ponte, a maior obra urbana até então executada pelo Departamento de Obras Públicas do Estado de São Paulo. Queixava-se o verso: What shall do a man but to merry... (Que poderá fazer um homem senão rir...) A cabana, declarada  monumento nacional, está firme, envolta por redoma de cimento e vidro, resistindo a todas as enchentes, a maior ocorrida a 19 de janeiro de 1977, quando as águas em fúria alcançaram o parapeito da veneranda ponte euclidiana, hoje destinada apenas ao tráfego de pedestres e de veículos leves. A  paineira caiu há muitos anos, plantada em seu lugar uma filha sua, ainda hoje no vigor de sua pujante vitalidade e delicada floração.

Livro e ponte concluíram-se quase a um tempo. A ponte, inaugurada a 18 de maio de 1901. O livro, sujeito a tantas  peripécias em sua publicação,  recebendo a primeira crítica jornalística a 2 de dezembro de 1902, já estava pronto quando menos em outubro.

Desde logo se percebeu que a análise de Os sertões não poderia ficar restrita ao âmbito de obra literária. O próprio Euclides tinha perfeita noção disso, tanto que colocou como subtítulo de seu trabalho a expressão “Campanha de Canudos”, o que remete o livro para o campo da História, embora vazado numa forma de alta qualidade textual.

Os sertões, “livro bárbaro da minha mocidade, tão estranho à maneira tranquila como hoje encaro a vida, que a mim mesmo custa entendê-lo”... É o que assevera Euclides em carta de 1908 ao escritor argentino Agustín de Vedia. Bem outra a sua opinião quando escreve ao pai Manoel Pimenta da Cunha, a bordo do navio que o estava conduzindo à Amazônia, em fins de 1903: o livro era nada menos do que “seu grande neto”.

Pela vida toda, Euclides se indagou se era, na verdade, autor de um livro só. A rigor, sim, porque suas outras obras, que abrigam páginas brilhantes como “Judas-Ahsverus”, como “Temores Vãos”, como “Fazedores de Desertos” ou “Estrelas indecifráveis”, foram coletâneas de ensaios jornalísticos publicados em diferentes épocas, jamais ganhando, como em Os sertões, uma unidade temática ou estilística. Ficou inconcluso o plano de Euclides de escrever um “segundo livro vingador” – Um paraíso perdido – tendo por tema  a desgraçada vida dos seringueiros nordestinos, levados por promessas mirabolantes ao cultivo das seringueiras na Amazônia.  Parte desse material se pode ler em À margem da História, no subtítulo “Amazônia, terra sem história”.

Enquanto a ponte metálica do rio Pardo estará,  como hoje, sujeita à inevitável ação do elementos e à incúria dos homens, o seu grande livro, por ser atemporal, estará infenso aos modismos e gostos de certas épocas. Tratando de um dos mais constantes assuntos das artes –  o sofrimento humano, Os sertões interessará  sempre a todos os povos e a todas as épocas. O leitor consciente nele perceberá a função sintonizadora, presente em todas as excelentes obras literárias, que lhes dá a inesgotável capacidade de despertar a solidariedade humana, ao longo de milênios até. Daí a imortalidade da Odisseia, da Divina comédia, do  Quixote, do teatro shakespeariano. E de Os sertões, sem a menor dúvida.

Euclides, antes mesmo da publicação da obra, intuiu que o tema por ele tratado bem que mereceria  ser levado a outros países, a outras culturas, através de outras línguas. Tanto que, antes mesmo da publicação do grande livro, escreve ao poeta baiano Pethion de Villar dando-lhe autorização para verter Os sertões para o francês. Tal plano jamais se concretizou, mas o tempo mostrou que o livro euclidiano tinha, mesmo, apelos universais. Hoje ele pode ser lido em francês, inglês, espanhol, alemão, italiano, sueco, dinamarquês, russo, chinês...

A unanimidade da crítica e dos estudiosos aponta este livro como um marco na cultura e na literatura brasileira, obra indispensável para a compreensão do nosso próprio caráter nacional.

À exceção de Machado de Assis,  nenhum escritor brasileiro foi mais estudado do que Euclides. Exaustivo levantamento do estudioso  euclidiano Adelino Brandão reúne na obra Euclides da Cunha – bibliografia comentada mais de NOVE MIL trabalhos dos mais diferentes formatos sobre a obra euclidiana, com grande ênfase em Os sertões.

É na verdade uma obra singular, ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza  quanto ao contato do homem,, e estremece todo, tocado até ao fundo da alma, comovido até às lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as secas que assolam os sertões brasileiros, venha da estupidez ou maldade dos homens, como a campanha de Canudos.

O tema de Os sertões – a campanha de Canudos, obscuro episódio no início da República, que tantas vezes foi tratado em nota de rodapé nos compêndios de História, poderia  ainda ter dado origem a uma simples obra histórica, mas tornou-se monumento da nossa língua e da nossa literatura, graças à força da transfiguração poética da realidade e pela originalidade e inimitabilidade do estilo em que foi vazado e por isso elevado à alta categoria de peculiaríssimo instrumento de expressão.

Com seu livro, Euclides da Cunha funda a nossa própria consciência crítica, interpretando cientificamente  um fato contemporâneo. Consegue demonstrar  que os jagunços rebeldes não eram culpados de crime algum; antes, eram vítimas de um complexo de fatores raciais, geográficos e históricos. Apenas defendiam suas casas, seu peculiar estilo de vida. Ao invés do legislador Comblain (fuzil belga usado contra os jagunços), a República deveria ter mandado para Canudos o mestre-escola, ou seja, o educador, o socializador daquelas populações  distantes trezentas léguas no espaço e três séculos na História...

Ao longo de mais de meio século de estudos euclidianos, não poucas vezes me interroguei a respeito do porquê da modernidade de Os sertões: o escritor, figura perfeitamente rara na cultura brasileira de seu tempo e de até muito depois; sua obra máxima, jamais alcançando a popularidade: suas muitas edições nacionais, somadas a todas as estrangeiras, não atingem numericamente o total de exemplares digno de um best-seller. À primeira vista, afigura-se incompreensível a repercussão deste livro na vida social, política e cultural brasileira. Deixando-se de lado a triste particularidade de ainda ser obra mais citada em suas frases de efeito do que lida na íntegra e com vagares, vem, contudo, merecendo, cada vez mais, aquilo que há mais de sessenta anos ressaltou Samuel Putnam, seu tradutor para o inglês: “... é uma das mais admiráveis obras que se tem escrito em todos os tempos... é a expressão profunda da alma de uma raça, tanto na sua força, quanto na sua confessada fraqueza.”

A que se deve, enfim, esse prestígio? Antes, duas premissas:

1.       O compromisso inicial de Euclides, em Os sertões, não foi com a literatura.

Um dos grandes temores de Euclides, à época do lançamento do livro, era transgredir as rigorosas normas da língua culta então vigentes. Aborrecia-o possibilidade de seu “livro vingador”, fortemente comprometido com toda a ciência do tempo e com a História em particular, ser objeto de críticas depreciativas originárias de um ginasiano qualquer. Esse temor, algo pueril para os padrões de hoje, mostra a vinculação de Euclides com a Verdade em todos os seus aspectos. É o que se depreende da leitura em profundidade de sua “Nota preliminar”, em que se lança a grande tese: Canudos foi um crime. Denunciemo-lo.

E essa denúncia perpassa todas as páginas do livro, terminando melancolicamente na frase final:  É que não existe um Maudsley para os crimes e as loucuras das nacionalidades...

Dominava Euclides o temor de ser tido como mais um literato, mais um smart da Rua do Ouvidor.  Isso explicaria, até, a rapidez com que Euclides tomou posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, deixando para anos depois seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, embora tivesse sido eleito quase ao mesmo tempo para as duas mais acreditadas entidades culturais do País.

 

2.       A invasão do terreno artístico-literário por Euclides deveu-se ao senso inato do épico, que lhe domina toda a frase.

Se retoricamente considerados, os apoios de Euclides residem na antinomia e na intensificação, como resumiu Alfredo Bosi,  estilisticamente  sua obra pode ser vista como um compósito de inteira originalidade: o sopro épico, no sentido básico de hegemonia do coletivo sobre o pessoal,  prevalece em todo o livro, desde a primeira página, com uma animada descrição orográfica do Brasil, em que a personificação de seres inumanos assume a expressão formal pendular, indo do barroco intensamente trabalhado nas frases longas até ao realismo presente nas conclusões, as quais, ora por indução, ora por dedução, fazem o leitor atento pensar numa demonstração matemática bem-sucedida. É o que se observa, para  exemplificar, no antológico trecho de caracterização do sertanejo, em que, já nas palavras iniciais, à semelhança de uma tese em  defesa, fica exposta a posição de Euclides: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”.  Ao longo do excerto autônomo, são expostos os argumentos em favor da tese. Ao fim, a vitória do escritor-matemático é de tal modo completa, que se pensa ter-se ele esquecido de acrescentar o velho fecho latino, usual nas exposições levadas a bom termo –   quod erat demonstrandum...

Quanto ao que se poderia chamar escritura euclidiana, ela está em desacordo com os gostos literários vigentes no Brasil. Basta, por este prisma, considerar a distensão das frases de nossos grandes escritores contemporâneos (francamente resvalando para o coloquial e para o agramatical), em oposição ao clima tenso que definitivamente  domina toda a frase euclidiana. Sob o ponto de vista exclusivamente formal, dados o vocabulário incomum e o arrevezamento frasal, poucos livros existem tão anacrônicos quanto Os sertões. De igual modo, sua sintaxe é pouco moderna: imitar o estilo de Euclides, hoje, seria arriscar-se a cair no ridículo.

Tomando-se a precaução de não igualar atualidade com permanência, pode-se dizer que Os sertões é obra mais atual do que até o desejável, tais e tantas são as questões que levanta e que ainda hoje nos dizem respeito no campo da demora cultural, do enquistamento social, dos desníveis regionais. Essa atualidade de Euclides superpõe-se às contingências históricas que originaram e alimentaram o drama de Canudos; essa mesma atualidade se localiza além e acima dos modismos literários que o autor herdou de sua época e de seu meio.

Onde, então, a chave da permanência de Euclides?

Antes de tudo, creio eu, na sinceridade com que o autor trata a transmissão de sua mensagem – a denúncia de um crime. Sua convicção pessoal a respeito de situações, conceitos e indivíduos é de tal modo persuasiva que, mesmo frente à mais fidedigna documentação histórica, o leitor  é sempre tentado a rejeitar essa realidade e a encampar a óptica euclidiana.

Essa capacidade de filtrar e de transfigurar a realidade bem pode atender pelo discutido nome de ficção, deste modo  presente em Os sertões e em outras páginas de Euclides, ainda que sem enredo tramado, ainda que neles o indivíduo (seja ele o Conselheiro ou Judas-Ahsverus) só encontre plausibilidade quando inserido no meio que o justifica e sustém.

Mesmo quando  tiverem sido superadas todas as desigualdades sociais (que , pelas suas consequências , Euclides eleva à categoria de crimes), para assegurar a permanência deste livro como  valor cultural inalienável do povo brasileiro restará aquela solidariedade que une os homens pela compreensão da sua própria humanidade.  Assim como o jovem leitor de hoje, ao se debruçar sobre as páginas do grande livro, sente todo o drama da inominável tragédia sertaneja, assim também, através dos tempos,  será despertada no leitor euclidiano a mesma solidariedade que ainda faz compreensíveis Homero, Virgílio, Dante e Camões.  Estará assegurada para a grande obra de Euclides, malgrado a defasagem de seus temas e processos, a intemporalidade de que bem poucas construções do espírito humano se revestem.

Em suma: é pelo domínio pleno da  função sintonizadora do texto literário que Euclides conseguiu êxito na tarefa a que se lançou, não prevendo, talvez, todo o alcance internacional de sua mensagem. Ela, no entanto, vem conseguindo interessar aos homens de todas as épocas, através da utilização de elementos vitais como a miséria, a injustiça., o heroísmo, a abnegação, a própria morte, que, por serem comuns à condição humana, ultrapassam as barreiras ambientais e linguísticas, para estabelecerem  entre a obra e o leitor uma simpatia, com toda a carga etimológica do termo, independente do espaço e do tempo em que se dá esse encontro, que tem por veículo  a palavra escrita, superiormente elaborada.

São José do Rio Pardo, janeiro de 2011

 

06/08/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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