Ao contrário do que...

            

... alguém poderia pensar, gosto de manter contato com meus eventuais leitores.

Se falam comigo na rua  a respeito do que escrevo, dou-lhes toda a atenção  e levo a sério as observações ou sugestões que me fazem. Se me telefonam, ouço-os com prazer. Se me escrevem, nunca deixo de lhes responder o mais amavelmente possível. Com o e-mail, então, tudo ficou limpo, claro, rápido. Não lhes prometo, nunca,  artigos de menor tamanho (geral aspiração!) ou  sobre alguns assuntos que me sugerem: lembram-me a velha história de tirar castanhas do fogo com a mão do gato...

Por causa da matéria “O que é, o que foi”, conversei com muitas pessoas, atendi a muitos telefonemas, respondi a volumosa correspondência escrita. Nem sempre posso publicar assuntos com aquele mesmo grau de interesse comunitário, porque, fundamentalmente,  é preciso que os temas abordados tenham variedade, atualidade e dêem prazer também a quem os escreve.

E aqui agradeço ao bom amigo e colega de imprensa Chico Braghetta, que em sua coluna tornou públicas, a meu pedido, algumas falhas que cometi  naquele incomum assunto. Quanto ao prêmio reclamado, sugiro que o Centro Cultural Ítalo-Brasileiro o patrocine!

Não sei, mas um pouco pela idade, difícil de ocultar, outro pouco por antigas lendas locais que correram desde quando eu lecionava no Estado, outro tanto ainda por me considerarem por vezesdifícil” escrevendo, o certo é que de  repente ouço revelações assim:

-“ Eu escrever para o Sr.? – nem morto/morta!” , como se eu sentisse especial prazer em corrigir a escrita alheia...

É bem verdade que nos remotíssimos tempos em que o   Colegial e o Normal   guardavam  ainda um forte sentido seletivo, era da obrigação do professor de Português não deixar passar nada do que seus alunos falavam ou escreviam sem a esperada precisão. Não que sempre os corrigisse ostensivamente, mas de um modo ou de outro, quem cometesse o que um autor chamou com exageropecados contra a castidade da língua”,  não ficava sem chumbo e tinha sempre a certeza de que eu havia percebido seu erro... Há muito que não faço mais isso, quem sabe até pela certeza de malhar em ferro frio.

Se a batatada, naqueles tempos,  tivesse sido por escrito, sempre havia na própria página corrigida minha anotação com tinta vermelha, às vezes até com a explicação da natureza da falha cometida. Erros simples, um grifo simples; erros mais graves, dois grifos; os cabeludos, não os dois grifos, mas círculos gritantes, pontos de admiração e/ou de interrogação. Casos especialíssimos  ganhavam comentários, perguntas, advertências sérias e até cobrança por tanta tinta gasta na correção...  Estas práticas, hoje, seriam consideradas antidemocráticas, ditatoriais, etc. Muita gente me detestou e ainda detesta por causa disso. Entre eles, porém,  nenhum dos muitos alunos que ingressaram nas melhores  universidades sem um dia de cursinho, nenhum   dos que adquiriram o hábito da leitura reflexiva e a capacidade de redigir com naturalidade e propriedade, nenhuma das  normalistas tão atentas e aplicadas.

Lembro-me como exemplos de alto aproveitamento algumas classes do Curso Clássico que, pequenas, eram constantemente submetidas a trabalhos até penosos, a pesquisas intensas na Biblioteca, de tal forma que se estabelecia entre os professores e eles um salutar clima de colaboração de que não poucos se lembram com saudade até hoje. Evidente que esse rigor não era exclusividade minha, mas de todos os professores, notadamente os de Latim, Francês e Inglês. Ninguém continuava aluno do Clássico do final dos anos sessenta  se não estivesse convencido de que valeria a pena tanto esforço.

Esta mesma atitude de rigidez era característica do Curso de Letras de nossa Faculdade de Filosofia. Podia-se exigir muito dos alunos que, à semelhança do que também ocorre hoje, não tinham tempo para nada, mas o criavam com o sacrifício de horas de repouso e lazer. Os frutos eram  compensadores. Citarei  uma turma de quando o curso era ainda de quatro anos, que obteve o melhor resultado de aprovações num concurso de ingresso no magistério público estadual, nas disciplinas Português e Inglês. Proporcionalmente o nosso índice se mostrou superior ao obtido por alunos da USP. Também nas avaliações de cursos que o MEC realizava, os conceitos desse Curso da FFCL sempre foram muitos bons, com alguns “B” que não foram “A” por causa de falta de espaço na Biblioteca, por deficiências físicas nas instalações,  por ausência de certos recursos audiovisuais.  Nunca pelo desempenho dos alunos no chamado provão. Eles são ou foram professores de alto prestígio na rede pública da região, mesmo de todo o estado de São Paulo.

Nesse curso de Letras da FFCL, fui por bastante tempo professor de uma disciplina que existia no último ano : Prática de Ensino do Português. Era ali que os alunos, munidos dos conhecimentos específicos  e a par dos recursos da Pedagogia e da Didática, davam aulas  para os companheiros de classe e para mim... Houve muito choro e ranger de dentes, houve descontroles emocionais, houve também  recompensa pelo estudo sério, pela honesta aplicação na tarefa de aprender a ensinar. Cada aula era seguida de comentários críticos dos colegas e de minha apreciação final, em que não os defeitos eram apontados, mas principalmente os acertos, as provas de inventividade, o domínio dos conteúdos expostos. Procurei passar-lhes algumas verdades triviais, a mais importante das quais, talvez, a de que a base do sucesso de alguém como professor  se assenta principalmente no domínio dos conteúdos. Professor que sabe mal e mal os assuntos de sua área corre o sério risco de sair desmoralizado da sala de aulas. Sempre me pareceu que alguém, mal preparado, inseguro, nervoso à frente de um grupo de rapazes e moças, deve secretar pelo suor alguma substância que caracterize seu estado de pânico em face da situação, porque lhes faltaria exatamente a primeira das muitas condições de êxito no magistério – a firmeza nos conteúdos. Essa, aliás, a lição transmitida por anos e anos pelo Prof. Hersílio Ângelo, o mestre de tantos de nós: se um professor tem dificuldade no convívio com os alunos, mas é senhor dos assuntos que irá lecionar, a situação é consertável. Sem essa condição de saber o que deverá ensinar, de nada adiantarão recursos didáticos e uso maciço de audiovisuais. A comparação possível nessas circunstâncias é que a bagagem intelectual e cultural de um bom professor deve assemelhar-se a um iceberg, ou seja, a parte visível normalmente oferecida aos alunos corresponde a um oitavo do total da massa... De modo geral, não é essa a  realidade cultural em nossas escolas.

Hojequem renegue ter passado por tanto sofrimento nesse tipo de aula, mas há a grande maioria que se diz  beneficiada pelo despertar de um espírito crítico e da necessidade de levar muito sério o ensino, o direito dos alunos quanto à correção e propriedade do que lhes seria transmitido em aula.

Agora, tantos anos depoisainda haverá quem não se sinta à vontade comigo, mas em compensação, recebo  belas provas de reconhecimento de ex-alunos, alguns francamente vitoriosos na área de Letras, com  mestrados e doutorados concluídos ou em andamento, com o exercício profissional nos melhores colégios e universidades do País e até no exterior. Isso sem falar naqueles excelentes estudantes do Euclides da Cunha e do Grafos que se tornaram advogados, médicos, jornalistas, engenheiros....

É sempre confortador saber que de um modo ou outro, nós seus professores influímos positivamente não na assimilação por eles de bons hábitos de leitura e de escrita, mas ainda na escolha de seu campo de atuação profissional.

Esta é afinal, como diria o velho Machado, a honra que eleva, exalta e consola.

06/08/2005
(emelauria@uol.com.br)

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