Do Calidoscópio (III)

 

A REMANESCENTE

No movimento 35, de 22 de outubro de 1972, o assunto é o aniversário de inauguração do prédio do Gymnasio do Estado Euclydes da Cunha, ocorrida a 18 de outubro de 1936.

Está lá explicado que “Num opúsculo cada vez mais raro estão consignados todos os gastos  na construção e equipamento do prédio. Há subsídios oficiais; há grandes e generosas ofertas de particulares; há doações de muitos dias de trabalho por parte de mestres e funcionários; mas há também em inesperado número a contribuição pouco mais que simbólica do homem comum que pôde apenas oferecer mil réis (dez tostões, como se dizia), valendo antes como adesão, como tomada de consciência, como ato de cidadania. Fica mais que evidente o trabalho ímpar de Francisco Spínola Dias, o Francisquinho, tomando sobre os ombros responsabilidades das mais pesadas e encargos dos mais onerosos.”

Está mais, que “Na singela sessão comemorativa de 18 de outubro (de 1972),  li uns trechos extraídos de O Estado de S. Paulo, de 20 de outubro de 1936, que noticia os acontecimentos da inauguração.  No momento da inauguração, o Governador (Armando de Sales Oliveira) foi recebido pelo diretor Dr. Abdiel Cavalcânti Braga e pelos professores Pedro Saturnino de Brito, Dr. José Ribeiro de Paiva, Jacob Furtner, Jorge Luís Abichabcki, José Germinal Artese, Vinício Rocha dos Santos, Odilon Machado César, Dr. Paulo Ferraz de Siqueira,  Maria Isabel Ada Parisi, Dr. José Caetano de Lima, Dr. José Reis Dias, Dr. Neje Farah, e o Inspetor Federal Plínio Silva. Pedro Saturnino de Brito, lente de Português, saudou o Governador. Pelos estudantes falou Paschoal Innarelli, enquanto Maria José Campos usava da palavra no momento de descerrar-se a efígie de bronze de Armando de Sales Oliveira.”

Comentário de atualização:
Certamente nunca mais esta cidade viveu politicamente momento assim glorioso. Aqui  estiveram presentes, além do governador, o prefeito de São Paulo, todo o secretariado estadual, os máximos expoentes do Legislativo e do Judiciário.  Do Pavilhão XV de Novembro (velho cinema com teto de  zinco, situado onde hoje está a Caixa Econômica Federal), Armando de Sales Oliveira leu pelo rádio, “para todo o Brasil”, seu discurso-plataforma de candidato a presidente da República. Talvez se elegesse, se tivesse havido as prometidas eleições, canceladas com a tomada do poder por Getúlio Vargas, a 10 de novembro de 1937.

É de se perguntar: quanto tempo faz que não aparece por aqui, não de passagem, mas em visita mais demorada, um governador de São Paulo?

Sinal da inexorável passagem dos tempos: de todos os nomes citados neste tópico, uns se tornaram patronos de escolas, praças e ruas. Outros se perderam no geral olvido, merecidamente ou não. Só é viva e sã, na força de seus oitenta e tantos anos, Maria José Campos (que depois seria Frigo), a mesma colega que me emprestou os recortes do Calidoscópio...

 

O BARULHO E O CALOR NA CABANA DE EUCLIDES

No movimento n.º 40, de 26 de novembro de 1972, a coluna abriga longa carta  em que nosso conterrâneo Dr. Honório de Sylos (o criador da Casa Euclidiana) refuta comentário do repórter Dirceu Soares, da extinta revista semanal  Manchete.

Dirceu, visitando o local histórico à margem do rio Pardo, escreve que “é uma afirmação sem sentido” a de que Euclides escreveu Os sertões na cabana de sarrafos e zinco, “porque a tal barraca era muito quente e o local ao lado da construção da ponte devia ser muito barulhento e Euclides não gostava que o perturbassem enquanto escrevia”...

Honório deve ter tido  vontade de esganar o repórter, mas  se contém nas palavras:

Naturalmente o jornalista não sabe que, há anos, morreu a bela, frondosa paineira, cujos galhos pareciam, segundo Guilherme de Almeida, agasalhar e proteger a cabana. Além da paineira, ladeava a pitoresca choupana  um bonito renque de bambu, também (uma pena) desaparecido. E tem mais: as paredes laterais eram escamoteáveis, o que dava, ao rancho histórico, perfeitas condições de utilização pelo engenheiro-escritor. Ao tempo de Euclides, portanto, ela não deveria ser muito quente.”

E prossegue meu respeitável amigo Honório de Sylos:

Quanto ao barulho, somente no final da construção da ponte, poderia perturbar o escritor. É que  se tratava de uma reconstrução. (...)  Algumas peças foram encomendadas à Alemanha e demoraram a chegar. Junto à hoje célebre choupana, foram, no primeiro ano de trabalho, construídos (sem ruído) os pilares.”

Conclusão de Honório:

“Além disso, não pode deixar de ser considerado o depoimento de seus amigos, que, à tarde, iam à choupana visitar Euclides e ouvir a leitura das páginas escritas. Entre eles, além de Escobar (o homem que, no dizer de Rui, tudo sabia) estavam Adaljiso Pereira, Valdomiro Silveira, Lafaiete de Toledo, Humberto de Queirós, José Rodolfo Nunes, José Honório de Sylos, meu tio-avô. Meu pai também.

Comentário de atualização:
Honório de Sylos foi um rio-pardense e euclidiano dos mais atuantes. Guardava certa mágoa de não ter sido eleito deputado estadual, pois contava muito com os votos da cidade, que não apareceram nas urnas e acabaram fazendo-lhe falta. Seu pai, Jovino de Sylos, patrono do Fórum local,  terminada a reconstrução da ponte, ganhou de Euclides a mesa simples (de tampa), em que na choupana redigira Os sertões. “Guarda-a como lembrança – disse Euclides a meu pai. É tão esquisita como eu mesmo: não tem gavetas...”  (Este depoimento faz parte da própria carta enviada a  Dirceu Soares.)

 

AS VIRTUDES DO COELHO (NA POSIÇÃO 51, DE 18 DE FEVEREIRO DE 1973)

Na Europa  descobriram, ou redescobriram, a carne de coelho. Além de seu alto poder nutritivo, não aumenta a taxa de colesterol, não  provoca ácido úrico e a espécie é de reprodução rápida (“Vai ser bom, não foi?”), a carne digere bem, etc.

Há anos passados, chegou para mim um sujeito, vizinho meu, e me ofereceu uns casais de coelhos e umas gaiolas. Disse também que precisava  vender porque ia embora; se não, nunca disporia dos bichinhos, que não davam nenhum trabalho nem despesa. Para alegria dos meus filhos, lá foram os tais coelhos para casa.                                  Dentro de um mês a população das gaiolas estava dobrada e bem nutrida, graças a muita couve, a muito capim, a muito tempo de atenção. Com a passagem dos dias, o capim do quintal, o capim dos vizinhos, o capim num raio de quinhentos metros não existia mais, e os coelhinhos ficando o dia todo, graciosamente, pedindo mais capim. Não é preciso acrescentar que ninguém jamais pensou em comer aquelas belezinhas.

A coisa se resolveu de modo inesperado: quando a explosão populacional já atingia picos insuportáveis, um cachorro (ou mais de um?) invadiu as gaiolas e matou todos os animais.

As crianças choraram  muito, armaram imaginárias represálias contra possíveis culpados, mas acabaram esquecendo. Até hoje desconhecem o sabor da carne de coelho.

 

Comentário de atualização:
Eu tinha-me esquecido completamente de que um dia criara coelhos. Não sei se meus filhos, em suas andanças pelo mundo, não acabaram comendo coelho por lebre. Nunca, porém, me ofereceram ou comeram carne de coelho perto de mim. E olhe que são chegados a novidades gastronômicas...

 

06/06/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

Voltar