Lembrança e esquecimento

 

 
" Foi muito lentamente que o sol perdeu a intensidade do brilho,
enquanto promessas de sombras surgiam na massa das árvores..."
  "...O espelho d’água recebeu tons inesperados de abandono."
(
De "Nós, intrusos" - crônica de 13/02/2010)

 

Pessoas versadas no tema  dizem que somos aquilo que recordamos e também aquilo que resolvemos esquecer. Fazemos um esforço consciente para descartar da memória  coisas desagradáveis.  O   cérebro apaga quase tudo que não nos interessa, num processo contínuo de repressão bem-intencionada, provocando  reconfortantes amnésias ou até mesmo salutares anistias.

Sem essa capacidade de esquecimento individual ou coletivo, o convívio social seria impossível, porque tanto um jogo de futebol quanto uma reunião de condôminos ou uma corriqueira briga de casal acabariam em desastre. Esquecer é uma arte que se aprende lentamente: as pessoas  ficam mais tolerantes quando envelhecem porque aprendem a identificar e selecionar as lembranças que valem a pena. Por isso a maioria dos velhos sabe quão inútil é brigar por qualquer motivo.  Muitos  preferem  desenterrar memórias antigas, geralmente episódios da infância e da juventude... Quer dizer: o velho que se sinta ao menos ágil,  potente, com planos para o futuro,  na verdade não é velho! Consolador, não? Quem explica isso direitinho é o grande escritor argentino Jorge Luis Borges, cego desde muito moço e nem por isso posto à margem da vida.

Como manter em boa forma a memória? Ainda a resposta tem o testemunho de  Borges que, aos oitenta e seis anos, às vésperas de morrer,  praticava com intensidade a literatura e o aprendizado de línguas, para provar que memória é função  que depende de uso: quanto mais a exercitamos, mais a conservamos. Um dado cientificamente comprovado: o mal de Alzheimer é menos severo em pessoas com bom nível cultural porque elas usaram mais o intelecto. Resolver palavras cruzadas, jogar damas e xadrez e até mesmo baralho estimulam mais o cérebro do que assistir à televisão,  indo  de canal em canal, sem um programa específico. Mas não existe nada melhor nem mais eficiente para a  memória do que ler atentamente, tentando refletir sobre o texto.

É a leitura dita reflexiva que põe em prática a memória das letras, a memória verbal e a memória da imaginação. Até mesmo uma frase simples de poucas palavras estimula a memória. Daí o perigo que correm os preguiçosos, desatentos, os que acham mil desculpas de não enfrentarem nem escritos elementares. É de interesse social que a imensa maioria da população seja estimulada  ao uso constante da memória através da leitura. No entanto, no Brasil, a leitura está sendo considerada, cada vez mais, uma excentricidade... Os resultados avassaladores dessa falta de apego à leitura não se têm feito esperar; poucos países apresentam alunos com tão baixo nível de compreensão textual como o Brasil. Isso é lastimável de mil modos, desde a triste situação de quem nem sabe tomar uma condução, passando pelo operário que não segura o emprego porque não sabe ler instruções elementares, até o estudante universitário que só entende determinado assunto se alguém lê para ele e interpreta o sentido da mensagem. Casos extremos dessa crescente incapacidade de entender o que se lê, recebem o nome de acroase. Os acroatas aparentemente sabem ler, mas  sofrem de invencível barreira: nada entendem sem que outra pessoa lhes explique o que acabaram de ler... 

Discussões vêm sendo travadas em torno de momentosa questão: crianças familiarizadas com o computador têm mais capacidade de memória?  A intimidade informática pode trazer benefícios à retenção de fatos. As crianças têm acesso a um maior volume de informações e fazem muitas atividades ao mesmo tempo. Isso tem um impacto positivo, mas não comprova o que muitos gostariam que passasse a verdade incontestável: que os meninos de hoje sejam mais inteligentes do que seus avós. Além do mais, podem cair nas perigosas armadilhas próprias da abusiva atenção ao micro e à internet –   a perda de tempo com assuntos sem nenhuma relevância social ou cultural.  Gênios continuam sendo raridade, menos para pais e avós desprovidos de qualquer senso crítico ou de noção do ridículo.

E os remédios para a memória? Dizem os especialistas que pouco ou nada funcionam. As pesquisas científicas estão mais à procura de uma pílula da memória, que teria por primeira finalidade encontrar respostas aos sintomas do mal de Alzheimer. Tudo se encontra ainda numa fase pouco produtiva. Quem sabe a solução esteja na manipulação de genes para impedir a manifestação de doenças degenerativas do cérebro?

Enquanto esses avanços  não chegam à realidade cotidiana, a melhor prevenção para a perda de memória é, mesmo, a boa e velha leitura.

Se você conseguiu ler e entender este  texto, parabéns. Aquele perigoso alemão, o tal Alzheimer, não penetrou em seu cérebro.

 Não tenho queixas de minha memória; ao contrário, considero-a boa porque tenho nítidas recordações da mais tenra infância, da meninice, da juventude, da maturidade, da velhice, tanto que levo muito a sério a sutil observação do grande escritor alemão Hermann Hesse:  “Por vezes, o que as pessoas mais desejam é exatamente esquecer!”

Poucas coisas haverá mais tristes do que a perda da memória ou o uso errôneo dos processos mnemônicos – aqueles criados para facilitar a retenção de nomes, datas, fatos.

Situações estressantes podem ocasionar momentâneos e comprometedores lapsos de memória, como foi o caso do experimentado orador dirigindo-se a grande plateia:

- Há meia hora, juro-lhes que eu e Deus sabíamos o que eu iria lhes dizer esta noite.. . Agora, só Deus sabe!

 

 

06/05/2017
emelauria@uol.com.br

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