Uma noite no Mercado

Não é toda noite que você vai ao mercado onde se dará um sarau (no plural saraus, e não sarais) de música erudita, erroneamente confundida com música clássica.

            Não, está muito crítico este começo. Tento de novo.

Uma noite destas, em que tudo deu certo, até a saída sem atraso de casa, minha mulher e eu fomos, no antigo Mercado Municipal, ouvir a Orquestra de Câmara Stravaganzza (não sei onde arranjaram o segundo z), que prometia – e cumpriu – um programa de ótima qualidade, tanto na escolha das peças quanto na execução de cada uma delas.

Engana-se quem imaginar que daqui pra frente haverá a análise do repertório, o comentário da performance de cada integrante, coisas do gênero. Não haverá por mil e uma razões, a primeira delas que  entendo pouco disso. Quando muito, sou um ouvinte consciente de centenas de CDs e DVDs com música da melhor qualidade – mais baratos, aliás, do que qualquer um dos chitõezinhos & xororós da vida.

Ainda não está bom o começo. Outra tentativa. A última, prometo.

Na noite de 27 de abril, minha mulher e eu chegamos ao antigo Mercado Municipal antes das oito da noite para ouvir a Orquestra de Câmara Stravaganzza, formada por nove músicos, todos ligados à Fábrica de Expressão, uma bem-sucedida experiência artística desta cidade.

Do programa constavam Vivaldi (“Primavera”, das “Quatro Estações”, “Alla Rustica” e um concerto para cordas), Johann Sebastian Bach (“Ária na Corda Sol” e um trecho da “Paixão segundo Mateus”), Tomaso Albinoni (“Adágio”), Wolfgang  Amadeus Mozart (“Adágio e Fuga para Cordas” e “Divertimento n.° 1”) e Astor Piazzolla  (“Oblivion”).

Muito boa a Orquestra como um todo, onde o virtuosismo  de Seir Piage Dias e Anderson Castaldi  encantava o público, que também reconhecia o valor dos outros integrantes, alguns ainda alunos da Fábrica de Expressão.

É isso. Como notícia é isso.

Para mim, em toda a música universal, nada (ou muito pouca coisa) supera o “Adágio” de Albinoni, um dos pontos altos da capacidade humana de externar os mais profundos sentimentos. Não cheguei a chorar durante sua interpretação, mas senti-me enlevado emocionalmente e achei que os aplausos foram até aquém dos merecidos. O público aplaudiu mais a “Primavera”, aquela do sabonete Rexona, lembra-se? Também o “Divertimento n.° 1”.

Na verdade, eu nem redigiria este texto se também  não tivesse em mente outros objetivos:

  1. É exemplar o aproveitamento dado ao belo navio ancorado na Praça Barão do Rio Branco, que, por muitas décadas, serviu como Mercado Municipal. Conservada a estrutura externa e eliminadas todas as divisões internas, fez-se do original prédio um espaço cultural de múltiplo uso, muito bom para exposições, palestras, pequenas representações teatrais e/ou musicais. Boa acústica, pouca interferência de ruídos externos. Bem que um cachorro ao longe pôs-se a latir, mas não chegou a perturbar ninguém. Perturbou mais um não sei quê derrubado lá no meio da orquestra que, contudo, não tirou a concentração dos músicos. Ou a desnecessária movimentação de funcionários na frente da Orquestra, quem sabe no afã de prestar serviço.
     

  2. Belo o público presente. E em sua maioria jovens, crianças até. Muitos com jeito de estudantes da Fábrica. Fiquei desnecessariamente preocupado com o eventual comportamento de uma assistente toda vestida de cor-de-rosa. Pensei comigo: “Quando menos se esperar, ela vai aprontar uma das suas”. Nada disso. Prestou silenciosa atenção enquanto deu. Depois, caiu no sono e, na placidez de seus poucos meses de vida, passou do colo da mãe ao da avó; desta para os cuidados da tia-avó, minha vizinha de cadeira.  Sempre em plácido repouso. Tudo indica que, de futuro, a bela criança não terá medo de nenhum tipo de música.
     

  3. Uma das muitas vantagens de se chegar cedo aos acontecimentos sociais ou culturais é que você se  encontra com muita gente, cada vez mais sumida por causa da televisão e/ou da idade. Se se chega atrasado, perde-se o melhor da festa, que é o convívio, hoje, em tantos casos,  reduzido drasticamente aos encontros em velórios.   Conversei com muitos amigos e conhecidos lá no antigo mercado, inclusive com Paulina Rodrigues Barbosa que, boa pianista e professora de música em outros tempos, acompanhou ritmadamente todas as interpretações. Lúcia Vitto mostrava-se contente com o bom público, com o comportamento polido das pessoas. O maestro Agenor Ribeiro Neto observava tudo, tudo. Troquei dois dedos de prosa com Ana Lúcia Sernaglia, secretária de Turismo e diretora da Casa de Cultura Euclides da Cunha. Falou-me de seu projeto de elaborar um folder bem atual sobre Euclides, a cidade, a Casa, o movimento euclidiano. Vamos conversar sobre isso.
     

  4. Inevitável tocar no assunto que está como espinha de peixe na garganta de tantas pessoas, de Ana Lúcia principalmente  – o ato de vandalismo que custou sem metáfora a cabeça de Euclides da Cunha. Quem não sabe que uma noite destas alguém tirou do Mausoléu a cabeça em bronze de Euclides? Não foi um roubo, como se noticiou, mas um furto bem fácil. Todos sentimos muito, a família de Euclides se manifestou, lavrou-se boletim de ocorrência, deu-se o mais amplo destaque ao sucedido... Mas recuperar o troféu perdido? Não acredito. Se não foi encomenda de algum colecionador euclidianamente fanático, a peça já deve estar derretida e vendida pelo valor de seu peso em bronze. Se fundiram a  dourada copa Jules Rimet original, por que não uma cabeça de Euclides? Vivemos tempos de cólera de que fala Gabriel García Márquez. Pessoas não tocadas pelo poder miraculoso de uma boa educação com base cultural nada respeitam, nada têm a perder. Nada aprenderam de civilidade, de patriotismo, de crença em valores mais altos. Não se sabe sequer se a guarda ostensiva de locais de valor histórico-cultural  resolve alguma coisa. Quem está a par do que vai pelo mundo toma ciência da permanente ação dos vândalos/terroristas em qualquer lugar, do Museu do Louvre à Praça de São Pedro, do metrô de Madri aos santuários de todas as religiões. Em Congonhas, deu-me pena ver o estrago nas esculturas dos Profetas de Aleijadinho, assim como na Pampulha, na gruta de Maquiné.

                    Não faz muito tempo, a vítima  do vandalismo anticultural foi outra vez a redoma de vidro que protege a cabana-símbolo da passagem de Euclides por esta cidade. Fala-se em cercar aquele monumento nacional, fala-se nisso, naquilo. Nada há, de fato,  que garanta a incolumidade não só dos objetos e dos locais, mas até das pessoas, se os autores dessas agressões precisarem fazer dinheiro para sustentar vícios.

                    Tristes tempos estes nossos.

                     

06/05/2006
(emelauria@uol.com.br)

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