Coisas da idade


"Numa calma rua de bairro."

 

O GRANDE SEGREDO

Dona Palmirinha  era daquelas vizinhas próximas do ideal: amiga, solidária e discretíssima. Tão discreta, que sua real idade permanecia como um dos enigmas do prédio.

Pelo que  demonstrava na fisionomia e  estado geral do corpo, ficava entre cinquenta e cinquenta e cinco, mas pelas coisas que contava com detalhes e nitidez de memória, sugeria já estar bem próxima dos sessenta. Pior ainda,  havia até indícios de que  esses emblemáticos sessenta podiam já ter sido ultrapassados.

O pessoal do prédio sabia:  dona Palmirinha detestava qualquer conversa que pudesse levar à interrogação de seus anos vividos.

Um tipo de pacto de não agressão reinante foi seriamente ameaçado no dia em que dona Palmirinha escorregou sabe-se lá em quê e machucou seriamente um braço. O socorro do hospital de seu plano de saúde foi acionado e compareceu rapidinho, um paramédico à frente.

O solícito rapaz foi tomando as providências cabíveis no caso, até o preenchimento da ficha de internação, no caso de vir a ser necessária. Quando o questionário chegou ao item data de nascimento, os vizinhos ficaram de ouvidos atentos, porque afinal o grande segredo estava para ser revelado.

Então dona Palmirinha mostrou todo o seu longo traquejo no assunto. Seus olhos percorreram as pessoas que a rodeavam expectantes e ela disse ao paramédico:

- Podemos falar em particular  na sala aqui ao lado?

Eu soube que ela morreu alguns anos depois. Muito provavelmente sem quebrar para ninguém o grande mistério de sua vida.

 

O DESMAIO REVELADOR

Dona Juliana e minha mãe eram amicíssimas de longa data. Minha mãe não fazia segredo nenhum, era de 1909, e pronto. Quem quisesse saber sua idade era só fazer as contas. Dona Juliana dizia-se bem mais nova, embora nada confirmasse exteriormente essa afirmativa, porque ambas mostravam a longa quilometragem já percorrida neste mundo.

Diferentemente de dona Juliana, sempre ativa e passeadeira, minha mãe, depois dos noventa anos, começou a decair física e mentalmente com grande rapidez, a ponto de necessitar da constante presença de pessoas à sua volta, dia e noite. Mulheres de coração bondoso se interessaram em prestar, mediante remuneração, esse delicado serviço de ficar à disposição de uma velha  que mal podia mexer-se na cama. Eram três as que se revezavam no atendimento de tempo integral.

O que elas não podiam imaginar é que um dia dona Juliana fosse ter um mal-estar e desmaio à entrada da casa de minha mãe. Solícita, a de plantão trouxe-lhe uma cadeira para sentar, deu-lhe água com açúcar e, sorrateiramente,  inspecionou a bolsa da desfalecida, aberta na queda,   em busca de sua cédula de identidade. E lá estava: data do nascimento, tanto de tanto de 1910... Um aninho e meses de diferença de minha mãe.

Logo depois, minha mãe morreu, às vésperas dos cem anos.

Dona Juliana  viveu uns anos mais, na santa presunção de que ninguém soubesse a sua idade verdadeira. Deixou, com isso, de comemorar seu centenário bem vivido.

 

PROBLEMA DE EDUCAÇÃO

O Dr. Neje Farah era um sujeito bonitão, bom médico e bom professor de Ciências Naturais no curso ginasial aqui da cidade.

Apesar de rigoroso na atribuição de notas, fazia-se querido pelos alunos e lhes dava alguma liberdade, ao final das aulas.

Pois um dia, aquela espevitada aluna da terceira (hoje sétima) série, valendo-se da liberalidade do professor, sapecou-lhe a pergunta que não queria calar:

- Dr. Neje, quantos anos o senhor tem?

Os colegas que ouviram tão inesperada indagação, conhecendo a rigidez do mestre, esperaram dele uma daquelas respostas malcriadas, quem sabe até acompanhada de punição disciplinar.

Nada disso. Com a maior tranquilidade o Dr Neje Farah explicou:

- Minha filha, eu sou velho, muito velho. Sou do tempo em que perguntar a idade das pessoas era grande falta de educação...

A espevitadinha não sabia onde enfiar a cabeça, mas com certeza não se esqueceu do incidente, nem agora, do alto de seus oitenta e tantos bem vividos.

 

VOCÊ TAMBÉM... VOCÊ TAMBÉM...

Era numa daquelas reuniões de confraternização, depois de tantos anos de formatura.

Quantos abraços e beijos, quantas perguntas sobre o passado e o presente, quanto desejo de pôr em dia conversas interrompidas havia tanto tempo...

De modo geral, as mulheres estavam com melhor aspecto, mais cuidadosas consigo mesmas,  mais produzidas.

Inevitáveis as surpresas, agradáveis ou não:

- Nooossa! Não te reconheci! Como você está diferente...

Ou:

- Puxa, rapaz, você deve  ter engordado umas três arrobas!

Ou ainda:

- Menina, você não mudou nada. Parece que o tempo não passou para você! Qual o segredo de tanta juventude?

Aí aquela coleguinha redondinha, com a mesma covinha nas bochechas, guardando algum encanto de passadas eras, vem despejar sua estudada surpresa em cima de mim:

- Mááárcio!  Como você embranqueceu!

- Pois é... Meus cabelos que não branquearam azularam...

Só me coube aproveitar sua baixa estatura e comprovar que sua cabeleira,  mais negra do que a asa da graúna, deixava aparecer raízes brancas. E lhe disse:

- Você também! Você também...

Ela me olhou entre surpreendida e ofendida:

- Você é um chato... Continua um chato...

 

NINGUÉM ME CONHECE?

Também esta se passa em festa de confraternização. Não uma confraternização qualquer, mas a comemoração de um cinquentenário, coisa rara de acontecer.

Estávamos no final de 1999  reunidos por causa do curso de formação de professores que havíamos concluído no longínquo 1949.

Não foi tão difícil identificar aquelas caras diferentemente castigadas pela vida. De modo geral, os traços fisionômicos se haviam conservado, malgrado a desigual aspereza do caminho que cada qual seguira. De lamentar as perdas, as definitivas perdas.

Um sujeito chegou, me abraçou, me tratou com familiaridade. Retribuí com polidez apenas, não o reconhecia, por mais tratos que eu desse à minha memória.

O mesmo deve ter acontecido entre ele e outras pessoas, porque a certa altura, o tal sujeito solicitou a geral atenção e se apresentou:

- Caros colegas, eu sou o Wilson, por apelido Militão, lembram-se? Não tenho culpa de ter emagrecido muito, de ter ficado careca e de parecer muito mais velho do que sou...

O Militão, ora o Militão, quem diria! Sujeito engraçado, muito boêmio. Aí cada um se chegou a ele, desculpou-se de um modo ou outro, fez-lhe um gesto de agrado.

Logo depois, vim a saber que Militão morrera de cirrose hepática.

 

UMA JUSTA DELIBERAÇÃO

Embora sem a frequência daqueles tempos em que estava mais bem instalado, o CCBF - Centro Cultural Baptista Folharini - tem lá suas reuniões, principalmente aos sábados de manhã. Na verdade, nem todos os sócios podem ir até a rodoviária, local de  problemático acesso e com as vagas do estacionamento sempre ocupadas.

Um sábados destes, dada a quantidade de membros que já chegaram à casa dos oitenta, ficou assentado que em toda história contada no CCBF e envolvendo pessoas veteraníssimas, não se usará mais a expressão velhinho de oitenta anos, como foi de praxe durante muito tempo. Em atenção especialmente à provecta idade do estimado patrono da instituição, estabeleceu-se que ou se empregará velhinho sem nenhuma alusão à idade, ou então será obrigatória a fórmula velhinho de noventa anos.

Faz sentido, por enquanto, não é mesmo?

 

06/04/2013
emelauria@uol.com.br

 

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