Encontros desmarcados

 
Da esquerda para direita:
Fernando Sabino - Hélio Pelegrino - Oto Lara Resende - Paulo Mendes Campos

Meu curioso neto, passeando atento com os olhos pela Coleção Aguilar de minha biblioteca, surpreende-se ao dar com três grossos volumes da Obra reunida de Fernando Sabino:

 

- Puxa! Eu não sabia que ele tinha escrito coisa assim... E então, vai me dizer que você era um dos amigos do encontro marcado...

 

- Não, você  tem obrigação de saber que eu não era, porque, afinal, nem mineiro sou... Acho, sim,  que sou dos poucos possuidores desses três volumes.

 

 (Três alentados volumes da Nova Aguilar, do Rio de Janeiro, lançados em 1996. Mais de duas mil e oitocentas páginas em papel-bíblia espanhol. Em 1998, paguei  ao livreiro Feitosa duzentos e quarenta reais, à vista... Uma nota preta.)

 

- É muito papel de um autor. Vai me dizer que leu tudo isso...

 

- Não li tudo,  mesmo porque todo autor tem coisas que preferiria não ter publicado, assim como todos nós gostaríamos de modificar, excluir e até rejeitar lances de nossas vidas. Se ele detesta certos livros seus, por que eu haveria de lê-los todos?

 

- Que livro Fernando Sabino rejeitou assim ostensivamente?

 

- Um dos que li meio por curiosidade, meio por obrigaçãoZélia, uma paixão, publicado em 1991, pela Record.

 

- Ele amou essa tal Zélia?

 

- O pior é que não amou. Fez a grossa besteira de aceitar a incumbência de botar no papel as memórias de uma das mulheres mais odiadas neste País, Zélia Cardoso de Melo, a superpoderosa e confusa ministra da Economia do governo de Fernando Collor  de Melo.

 

- Ah, ouvi falar dela. Parece que acabou casando com o Chico Anísio...

 

- Bem antes disso teve um caso escandaloso com Bernardo Cabral, um sessentão bem-posto, casado, senador pelo Amazonas. Eles dançaram de rosto colado numa festa em Brasília ao som do meloso bolero Bésame mucho... Fizeram completa abstração do tempo, do espaço, de todas as noções da conveniência. Acontece...

 

- Sessentão, casado, senador – é dose...

 

- E mais: derramadamente romântico, barrigudinho, quase careca. E amazonense, merecedor do apelido de boto, figura folclórica  símbolo do encantador de mulheres das margens dos rios. a patroa dele, nada encantada com a situação,  resolveu acabar com as estripulias todas e exigiu retratação pública do marido...

 

- E como foi a aceitação do livro?

 

-  Nas primeiras semanas do lançamento, vendeu como pão quente. Depois a crítica e  “amigos” de Sabino caíram de pau, desmoralizaram os personagens e o autor, acusado até de mercenário.

 

- Por quê? Ele cobrou para escrever as memórias da ministra?

 

- Sim, cinquenta mil reais, que  acabou doando a instituições de caridade, como faria mais tarde, em 1999, com os quarenta mil recebidos da Academia Brasileira de Letras  (Prêmio Machado de Assis), pelo conjunto de sua obra.

 

- Poderoso o Fernando Sabino, hem?

 

- Parece que nunca teve problemas financeiros. Casado com uma filha do governador mineiro Benedito Valadares, dizem que ganhou de presente de núpcias, aos vinte e dois anos, um cartório no Rio...

 

- Ah, bom!

 

A triste realidade é que depois das bordoadas que recebeu de todos os lados por causa de  Zélia, o escritor restringiu sua vida social, não atendia a telefonemas, virou um solitário, mas não um recluso. Todos os dias, até as vésperas de morrer (11 de outubro de 2004), fazia caminhadas pelo calçadão de Copacabana ou pelas ruas de Ipanema, bairro em que residia. Interessava-se por tudo, por pessoas humildes e sempre achava aplicação a um de seus  favoritos princípios de vida: “Quando você tem um problema muito difícil de resolver, comece por resolver o problema dos outros”.

Peculiaridade de Sabino: voracidade epistolar. Escreveu abundantemente para os três amigos queridos, em textos tornados públicos no livro Cartas na mesa (2002).

 

À amiga Clarisse Lispector escreveu centenas de vezes. Seus textos foram  reunidos em  Cartas perto do coração e transformados em peça teatral. A Marcelo de Andrade, teatrólogo e  seu amigo mais chegado nos últimos tempos, disse a respeito dessa peça, quando em elaboração:

- Você está me dando punhaladas de mel nos olhos...

 

Muita coisa nesta vasta obra de Sabino tem valor permanente, como suas melhores crônicas, seus contos selecionados, além do romance O encontro marcado, de 1956, narrativa de cunho autobiográfico em que, usando as figuras dele e de três de seus amigos – Hélio Pelegrino, Paulo Mendes Campos e Oto Lara Resende, narra as  angústias de sua geração, frustrada e sem rumos, em ansiosa busca de motivos e orientações para viver.

 

 Apesar de tantas qualidades, Sabino  foi acusado de escritor de um romance. A esse respeito, aconselhou-o o grande Guimarães Rosa, que no mesmo ano de 1956 lançava Grande Sertão: Veredas :

 

- Construa pirâmides,  e não biscoitos.

 

Rubem Braga, talvez o maior de nossos cronistas e também escritor de fôlego curto, não concordava com Rosa. Para RB, os biscoitos de Sabino eram a papa fina de sua obra...

 

Mas a verdade é que, apesar da notoriedade de suas crônicas e contos, muitas vezes  perfeitamente adaptáveis ao cinema e à televisão, como “O homem nu”, “A mulher do vizinho”, “Deixa o Alfredo falar!”,  O encontro marcado merece lugar à parte, por ser aquilo que o crítico Wilson Martins  denomina romance de formação, isto é, aquele que acompanha o amadurecimento dos personagens e suas lutas para enfrentar o mundo, um processo em que eles gradativamente perdem a inocência e são assaltados pelo ceticismo que, em grande parte, vai dominando depois a vida de quase todos os adultos, a menos que iluminados pela esperança que o amor dá.

 

Mas, contrariamente ao que se poderia temer, no Encontro não se dá a vitória do sentimentalismo. Nele, Fernando Sabino apresentou, num tom levemente irônico, quase desiludido, o processo de  formação de quatro mineiros vitoriosos no Rio de Janeiro, então a capital política e cultural do Brasil. Eles quatro se posicionaram como pessoas  que não acreditavam muito nas chamadas verdades aceitas. Produtos da “tradicional família mineira” e portanto envolvidos num complexo universo mitológico, muito tiveram de lutar na desafiadora vontade de enfrentar o mundo.

 

Sabino dava tanta importância à troca de opiniões a distância, que mandou acrescentar à Obra reunida ( páginas 999/1067 do volume III) as Cartas a um jovem escritor, com o material epistolar recebido de Mário de Andrade entre 1942 e 1945. está o imediatamente acatado conselho do autor de Macunaíma, logo na primeira carta:

 

Si você quiser continuar sendo escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome. Tavares Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. O que é impossível é Fernando Tavares Sabino. Me desculpe esta sinceridade... 

 

Por fim: Fernando Sabino é um dos escritores mais presentes nas listas de leituras indicadas pelas escolas a seus alunos do curso médio. O total de exemplares de seus livros supera três e meio milhões.  O Encontro Marcado está próximo da 80.ª edição.

 

 

06/02/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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