Filho do silêncio

  

            Se você, como tantos, também acha que rouquidão e afonia são sinônimos ou quase, precisa refazer conceitos.

            Existem os que têm voz rouca, roufenha, agourenta, fúnebre, fantasmagórica, por obra e graça da natureza, assim como há os que, não sendo roucos, o ficam ocasionalmente, por culpa de resfriados, gripes e defluxos. Rouquidão pode ser enfermidade profissional tão comum a radialistas, cantores, camelôs, professores, políticos, apresentadores de tevê, mães que berram o dia todo. Imagine quantas combinações destas atividades: professor/camelô, radialista/político, mãe/cantora, etc.

            Também eu, ao longo de meu magistério, apesar de certos cuidados e treinos, tive meus dias de rouquidão decorrente do uso abusivo de um dos principais recursos didáticos  de que, via de regra, dispõem os professores públicos: a goela.

            Que eu saiba, rouquidão e suas seqüelas são muitas vezes subprodutos de má impostação da voz, mas como atualmente dou poucas aulas, entendo melhor a frase sutil atribuída a Tancredo Neves, que de vez em quando se fechava em silêncio, de onde saía para explicar: “Estou rouco de tanto ouvir...”

            Um dia destes, na Faculdade, uma jovem veio me comunicar que era alérgica ao pó de giz.

            -- Você leciona há quanto tempo? – indaguei para ver se a consolava um pouco.

            -- Não,  não leciono. Sou a faxineira nova.

            E o pó de giz saído das eventuais lousas que apagava, tinha atacado a moça tanto na voz quanto nos olhos lacrimejantes. Foi sua fisionomia tristonha, de quem anda descontente com o que faz e com o que ganha em troca, o que mais me levou a confundir a diligente funcionária com uma educadora caloura e já desiludida.

            E não está difícil baralhar profissões. Contou-me uma parenta que mora em São Paulo este caso edificante: a pia da cozinha de seu apartamento entupira de um jeito que os meios convencionais, como geringonças de borracha, água fervente, xingamentos, diabo-verde e assemelhados nada resolveram. Era exatamente um sábado à tarde. A solução, que se sabia cara, foi recorrer a uma dessas firmas especializadas que usam mais sofisticação do que a SWAT nas ações perigosíssimas. O técnico, vistosamente uniformizado, chegou, assuntou bem a situação, forneceu explicações teóricas muito convincentes, resolveu a questão sem nada sujar ou quebrar e apresentou o total dos seus honorários profissionais.

            -- Noooossa! – era minha parenta quase caindo dura, à vista daquela exorbitância. O Sr. trabalha meia hora e está me cobrando o que eu, como professora, não ganho num dia inteiro?!

            -- Eu sei, eu sei, aquiesceu o superdesentupidor. Também eu leciono. Dou umas aulas de Física, para não perder o lugar e as férias. Sou efetivo por concurso, ainda acrescentou com um restinho de vaidade. Mas trabalhar para ganhar bem, isso já outro papo, fora do alcance dos professores.

            Mas onde fica a diferença entre rouquidão e afonia? Uma pessoa rouca pode falar, ainda que com desconforto para si ou para os outros. Uma antiga apresentadora carioca do telejornal “Hoje” tem uma voz tão rascante, que até limpo minha garganta na ilusão de causar algum efeito na dela, mas em vão.

            Já a afonia é a perda de voz por lesão nas cordas vocais.  No feriadão que passou, a afonia me pegou de cheio e me estragou uma viagem. Quando me dei conta, a voz não saía, a não ser em tom de segredo. Fiquei mudo sábado, domingo e segunda-feira. Sábado, por absoluta necessidade; domingo, por mínima precaução; segunda, para consolidar a  cura e para me dar, pelo autodomínio, a consciência mais aguda de como se fala muito por nada. A tal função fática da linguagem é um espanto.

.............................

            Até aqui, ligeiramente alterado, um texto de 1989, que figura no livro Nós, os nossos, alguns intrusos. Só não transcrevi umas poucas linhas finais, o que demonstra com total evidência como meus artigos daqueles já recuados tempos eram bem menores. Sei que alguns leitores vão me perguntar por que não volto agora à medida antiga e não terei muitos argumentos de defesa dos meus atuais tijolaços.

            Tenho, porém, a obrigação de  preencher meu espaço nesta última página,  tão generoso, que muitas vezes comporta até fotografia.

            Assunto é que não falta. Falta-me, isto sim, coragem de falar, por exemplo, do campeonato nacional conquistado de modo muito original pelo Corinthians, mas me abstenho de pisar nesse terreno minado, ainda mais porque quando da conquista do título mundial de clubes, em 1998, escrevi longa matéria despedindo-me do campeão dos campeões, minha paixão desde a mais tenra meninice, tudo por causa de um distintivo de lapela ganho de um primo de saudosa memória.

            Poderia ao menos falar de Romário, o goleador quarentão, em plena forma, para desespero de quantos o deram como  mortinho da silva para o futebol. Em forma e muito humanizado pelo que tem aprendido com a filhinha portadora da síndrome de Down.

            Não, arrematarei retornando ao tema encanador, sem dúvida uma profissão das mais rentáveis. Lembro-me, no tantas vezes reprisado filme O Feitiço da Lua, com a imorredoura Cher,  do diálogo meio surrealista entre um professor da Universidade de Nova York ( que havia sido brindado publicamente com um copo de água no rosto por sua jovem aluna e namorada de plantão) e a senhora que, relegada pelo marido, fora jantar sozinha numa cantina italiana. Ao levá-la para casa, sem ter respondido satisfatoriamente à pergunta dela sobre por que os homens traem,  o professor de Artes ficou admirado com o tamanho e solidez da residência dela.

            -- Seu marido deve ganhar muito bem para manter morada tão espaçosa. Qual a profissão dele?

            -- É verdade, respondeu ela. Ele ganha muito bem, mesmo. Ele é encanador.

            E o professor arrematou: “Isso explica tudo...”

            Já que estou parecendo time de futebol gastando o tempo para assegurar  o triunfo conquistado a duras penas, por que não me referir, por associação de idéias e com uma ponta de maliciosa admiração, ao comercial da Porto Seguro (333-PORTO), em que o zelador de prédio, o Zé, contrariando tudo o que vinha praticando com outros moradores,  acha melhor atender pessoalmente ao angustiado pedido de S.O.S. emitido pela voz melíflua da moradora cujo chuveiro se queimara, estando ela inteirinha ensaboada?

            E assim, perfeitamente integrado no espírito amolentador  deste chuvoso e quase invernal dezembro, chego aos cinco mil caracteres digitados, suficientes para dar por cumprida, sem maior brilho, é verdade,  a voluntária obrigação semanal.

 É da natureza da crônica não levar muito a sério nenhum assunto, mas acho que hoje exagerei. Pratiquei o que se dizia antigamente do professor que falava, falava, sem nada dizer: enchi lingüiça.

 

06/01/2007
(emelauria@uol.com.br)

Voltar