Louvação à leitura e à memória
Não sei se meu antigo professor do Científico e da Escola Normal, Antônio Ferraz Monteiro – o Dr. Lilo, chegou sequer a ler alguma coisa do escritor argentino Jorge Luis Borges. Entretanto, uno a figura dos dois quando quero falar ou escrever a respeito da leitura e do cultivo da memória. Borges, todos sabem, era um viciado em livros, embora cego desde muito moço. Nem por isso, valendo-se do auxílio alheio, deixou de conhecer e reter o que houve de melhor na literatura universal e de escrever sobre assuntos dos mais diversos. De todos os seus livros, releio com redescoberto prazer Ficcionario (Una antología de sus textos, edición Tierra Firme, México, 1981, porque ali estão compilados alguns de seus mais profundos pensamentos sobre o fascinante tema da ficção redescoberta. O Dr. Lilo, que escrevia muito sobre assuntos de sua especialização professoral – Biologia, Genética, História Natural, quase não falava, fora das aulas, sobre esses temas. Preferia discorrer longamente sobre Santo Tomás de Aquino, sobre Buda, sobre Santa Teresa de Ávila, sobre filósofos gregos. Suas aulas eram encantadoras, especialmente na Escola Normal, onde não imperava a premência dos vestibulares e onde havia trinta mocinhas em flor apaixonadíssimas pelo mestre e cinco ou seis rapazes que o respeitavam muito. Assuntos dos mais variados substituíam os rançosos conteúdos curriculares. O Dr. Lilo embrenhava-se pela filosofia, religião, sociologia, direito, linguagem, arte... Seguia à risca o velho conselho de Marcial: tudo que diga respeito ao homem interessa-me. Privei de sua amizade por longos anos, colegas que fomos tanto no “Euclides da Cunha” quanto na Faculdade de Filosofia. Acompanhei, preocupado, o seu gradativo alheamento do convívio com os colegas, depois do falecimento da esposa, D. Tita, bondosa mulher que deveria de ter tido singulares atrativos espirituais, porque fisicamente destoava da figura encantadora do marido. O Dr. Lilo acabou voltando para sua cidade natal, Mococa, onde faleceu logo depois. Sua morte não teve a repercussão que entre nós deveria ter, nada se fazendo em favor de sua memória. Dos conselhos que me deu talvez nenhum tenha calado tão fundo quanto este: - Quando você quiser guardar para sempre alguma coisa que leu, fale a respeito dela com muitas pessoas. Se possível, escreva sobre o assunto lido. Pura verdade. Quando lemos um trecho, um livro, um tratado, ainda que tenhamos compreendido tudo, falta-nos tomar a providência complementar de reproduzir oralmente a essência do conteúdo, ou de construir quando menos um esquema que nos avive a memória. Um dia destes, fui à UNIP conversar um pouco com o animado grupo de muitas senhoras e poucos senhores que integram o que chamam INTERIDADES, uma benéfico modo de manter unidas e em alerta mental pessoas acima dos cinquenta que gostam de conviver e aprender. Uma vez por semana se reúnem por duas horas e ouvem os mais diversos expositores falando sobre temas dos mais variados. Para efeitos de registro, meu assunto chamou-se “O homem e as línguas”, título que tomei emprestado de excelente livro de Frederick Bodmer, traduzido com muita propriedade em 1960 por três eruditos escritores: Aires da Mata Machado Filho, Paulo Rónai e Marcelo Marques Magalhães, dos quais hoje ninguém se lembra. Tomando algumas palavras como pretexto e ponto de partida, misturei gramática, etimologia, semântica, fonologia. Parece que gostaram do que eu disse, mas com certeza eu gostei muito mais, porque me senti senhor dos assuntos diversos de que tratei, com a memória pronta e a concatenação de frases fluindo com naturalidade. Como diria o meu ex-aluno urologista, para minha idade isso é ótimo. Dias depois, sai o resultado de rigoroso censo da universidade brasileira, em que são mostrados com total crueza os seus defeitos capitais. Entre eles, uma triste comprovação: quase metade dos alunos que ingressam numa escola superior particular NÃO CONCLUI o curso. Nas universidades públicas, o nível de desistências também é altíssimo – trinta e cinco por cento. Razão principal em todas as escolas: os desarmados estudantes não conseguem acompanhar os conteúdos dados porque não entendem o que os professores ensinam. Falta-lhes o básico do que deveriam ter aprendido no ensino fundamental e médio. Ou seja, não retiveram quase nada do que foi visto, ou pior, não viram tudo o que deveriam ter visto. Dois depoimentos importantes na tentativa de entender essa dura realidade. O coordenador do censo diz: “Não adianta a escola superior alegar que o erro vem de outros graus de ensino. Cabe a ela resolver ou minimizar o problema de falta de conteúdo de seus alunos, até através de aulas de reforço”. E uma professora de Educação da USP, com jeito e fisionomia de pessoa experimentada, dá o grande conselho aos alunos de todos os graus e de todos os cursos: “Leiam, leiam. Ainda que seja revistinha, leiam. Sem isso, não se aprende nada”. Forte, não? Fica assim mais uma vez reconhecido o poder insubstituível da leitura e sua íntima relação com a capacidade de falar, de escrever, de entender o que os outros dizem e escrevem. Partindo-se da realidade segundo a qual as nossas vidas são muito curtas para usufruirmos todas as oportunidades da trajetória humana, nosso conhecimento a respeito das mais importantes situações da experiência que vamos adquirindo está diretamente ligado à leitura que tenhamos feito dos relatos alheios. Pode-se mesmo considerar seriamente um dos poderes mais atuantes na vida intelectual o poder da leitura, raro exemplo de domínio permanente de alguém sobre as coisas que o cercam. Desse poder da leitura decorre não apenas a força do conhecimento, mas, sobretudo, a aquisição de um tipo de qualificação que nada tem de transitório. Um homem politicamente poderoso, outro homem economicamente sólido podem perder a força política e a força econômica. O mundo guarda milhares de ex-líderes, de ex-magnatas. Nunca, porém, se dirá de alguém que foi culto e não o é mais, exatamente porque cultura é um bem que não se perde e, além de tudo, não conhece limites de expansão. Claro que os pouco lidos e os de nenhuma intimidade com a palavra escrita bem que gostariam que ocorresse uma espécie de nivelamento por baixo em todos os setores da atividade humana, de forma que desaparecessem as insistências em torno do ler e do escrever. A realidade é bem outra, pois a reflexão crítica e a própria verticalidade do conhecimento exigem o contato direto com a fonte (quase sempre o livro). Os veículos de comunicação de massa apenas transmitem informações horizontais sobre a realidade das coisas, formando a chamada cultura de superfície. A verdadeira cultura , aquela que vai muito além das sensações epidérmicas, reclama a consulta ao texto impresso e questionador, capaz de estabelecer verdades seguras e definitivas. Para um homem de cultura, deixar de ler é tão grave quanto deixar de se alimentar. Para quem escreve, é a leitura que faz descobrir sensações e impressões; é a leitura que facilita o acesso aos recantos da memória relegados ao esquecimento. A leitura traz à tona uma espécie de conhecimento que exige a expressão escrita para aparecer. Se não se tenta escrever sobre isso ou sobre aquilo, perde-se para sempre um precioso material de cuja existência nem sempre se tem clara noção. E assim, exatamente na era da imagem e do som, a leitura se torna mais urgente e necessária para todos quantos não se conformarem de ficar limitados aos estreitos espaços do factual, onde predomina a informação rasa e acrítica, uma eterna recapitulação do que aconteceu no último capítulo da telenovela ou o comentário requentado do que todos viram no mesmo programa dominical da TV de maior audiência nacional. Felizmente, o hábito de ler admite o ingresso de retardatários com vontade suficiente para vencer a paralisia mental dos acomodados. O tempo perdido é parcialmente recuperável e capaz de conferir outra dimensão à própria significação da vida de cada um.
05/12/2009
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