Lidando com a velhice

 

 
Onde estava o fotógrafo?

 

No dia e hora em que me dedico à ainda agradável tarefa de escrever minha coluna semanal no DEMOCRATA, com reprodução no jornal digital, no site saojoseonline.com.br e no facebook, sinto uma espécie de recusa interna em tratar da maioria dos temas à mão, como se de repente, sem essa nem aquela, se instaurasse a comprovação da desnecessidade de me preocupar com política, educação, literatura e atualidades. Sobre esportes nem se diga.

Política desaguaria ainda nas tricas e futricas polêmicas criadas em torno da ação penal 470, por apelido mensalão. Educação bateria de frente com desalentadora e recente notícia: no estado de São Paulo, por dia oito professores efetivos do ensino público pedem exoneração do cargo, por já não suportarem a carga material e emocional de dar aula. E tudo por por um salário aviltante.

Literatura passa a assunto de nenhum interesse para as massas acomodadas ao não pensar, ao não imaginar. Atualidades não suportam dois dias como novidades, tais e tantos são os acontecimentos trazidos a público. Esporte – principalmente esta semana não. A queda vertiginosa de produção do Corinthians exigiria aprofundamentos psicossociológicos incompatíveis com meus recursos de analista parcialíssimo.

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Alguém sugerirá que meu caso é de spleen, um estado de ânimo bem de acordo com jovens de caráter romântico, não de um homem mais que maduro, ultrapassado em mais de quatro quintos de século bem vividos. Se enveredo por aí, logo um leitor me soprará que estou é  com veieira, nenhuma doença das veias, mas sim defeito insanável de quem ficou véio... Deve ser isso.

O envelhecimento tem aspectos muito particulares, porque ninguém envelhece por igual. Aqui, por causa de certa dificuldade corporal, você desiste de caminhar os tantos quilômetros diários recomendados e resolve por sua conta e risco cumprir, quando muito, metade da tarefa; ali, você se questiona se paga a pena, na sua idade, manter certos compromissos a que ninguém mais o obriga. Você os cumpre porque quer, gosta, ainda se acha útil e capaz; mais além, acomete-o séria dúvida: o que você está fazendo é compatível com seu estado? E assim vai, como se envelhecer fosse, em resumo, excluir, abdicar.

O fato é que dinamismo, mobilidade, espírito de iniciativa, inventividade são atitudes próprias de poucos octogenários. Meu primo Hermenegildo Bertocco e meu cunhado Antonio Dib, ambos na casa dos oitenta e cinco, são alentadores exemplos dessas qualidades de fazer inveja. Se você, nessa idade provecta, ainda revela uma ou mais destas virtudes, dê-se por muito feliz e considere-se também um privilegiado. Ah, não posso me esquecer de Nelson Pesciotta, meu professor de Sociologia na Escola Normal, que neste final de 2013 emplaca noventa aninhos, lépido e produtivo na sua  Academia de Letras de Lorena.

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Não quero, porém, deixar escapar um atalho que pode dar em bom lugar: ninguém envelhece por igual.  Até há pouco tempo, eu  sentia uma espécie de pudor (hoje superado) em, por exemplo,  me sentar num banco de jardim público lá pelas dez da manhã, como tantos fazem em nossas praças centrais e ficar ali jogando conversa fora. Conheço dezenas de madurões que têm até horários certos, lugares certos, companheiros certos. Se um falta ao compromisso, logo os outros se preocupam. Um dia de ausência, tudo bem. Pode ter sido visita importuna, achaque esperável, compromisso incomum. Se o companheiro não dá as caras por dois ou três dias, então os outros já ficam em estado de alerta, querem saber o que está acontecendo. O retorno do irmão desgarrado é sempre um alívio, porque, afinal,  quase todos estão naquela faixa etária que se pode chamar de linha de frente na batalha da vida.

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Pergunta típica que fazem a quem já não deveria estar preso a horários, a compromissos profissionais, em razão da idade:

- Você ainda trabalha?

Que força tem este advérbio ainda... É de tempo, mas de um tempo comparável a prazo de validade vencido. O implícito da pergunta é cheio de censuras, como se dissessem:

- Você não percebeu que está na hora de sossegar, de dar o lugar para outro bem mais jovem, mais disposto, certamente mais necessitado do que você?

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Suportei o quanto pude esse tipo de pressão, próprio do Brasil e de seu estranho sistema de aposentadoria compulsória em função pública. A 11 de fevereiro de 2002, muito a contragosto, apresentei minha carta   de exoneração da Faculdade de Filosofia, que ainda não havia ganhado o apelido de FEUC. Naquele dia eu completava setenta anos e estava obrigado por lei a cair fora. Não me sentia nem um pouco necessitado de me afastar das aulas, como certamente milhares de outros funcionários também não se sentiram, mas foram compelidos a depor as armas   no serviço público.

             Não devo ter feito falta à Faculdade, mas a Faculdade fez muita falta para mim. Sorte grande foi o convite da UNIP, universidade particular que então se instalava na cidade. Do começo de 2002 ao final de 2008, tive grande satisfação de lá lecionar, primeiro no curso de Propaganda e Marketing, depois no de Direito e finalmente no de Letras. Acabei, às portas dos setenta e sete anos, despedindo-me voluntariamente das aulas.

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Essa mesma aposentadoria compulsória tirou de circulação excelentes professores das grandes universidades e mexeu com a composição dos tribunais do País. Mestres e ministros bem que gostariam de permanecer na ativa ao menos por mais cinco anos. Seria bem outro o panorama do  Supremo Tribunal Federal, por exemplo,  se alguns de seus membros, excelentes juízes  e notáveis conhecedores do Direito, não tivessem sido atingidos pela  draconiana norma constitucional, que bem merece o nome de expulsória. País civilizado não põe no lixo a experiência de seus velhinhos em boa forma física e intelectual.

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Volto ao caminho mais largo desta digressão: ninguém envelhece por igual. E isso é tanto motivo de alegria quanto de mágoa. O marquês de Maricá (1773-1848), autor brasileiro que não primou pela originalidade, concebeu esta frase que merece reflexão: “Nada há mais ridículo do que um velho que não se reconhece como tal”. Claro, no tempo em que viveu, envelhecia-se mais cedo e muito mais por igual, mas há um tom de solene advertência em seu dizer. Rui Barbosa (1849-1923) não perde oportunidade de empregar um verbo que não encontrei  em outro autor: campar, no sentido de vangloriar-se, orgulhar-se: “Onde os meninos camparem de doutores, os doutores não passarão de meninos”. Ambas as frases têm relação com o envelhecimento desigual, de tal forma que numa só pessoa podem perigosamente conviver sensações e aspirações com décadas de diferença entre si.

Não que por vezes eu tenha abstraído o fluir do tempo e me colocado na situação de jovem, mas seguramente  evitei, até agora, reconhecer que tenho  oitenta e um anos completos: vez por outra, penso que tenho só  oitenta; aqui e ali, dou-me setenta; em situações especiais me considero com sessenta... Menos não, porque, afinal, tudo tem limite!

Estas manobras diversionistas não enganam quase ninguém, mesmo porque para os jovens de verdade tanto faz alguém se dizer com setenta ou sessenta. Como confirma a música que já fez  sucesso, não se deve confiar em ninguém com mais de trinta.

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E assim, à semelhança daqueles dois italianos náufragos que, mesmo não sabendo nadar, chegaram sãos e salvos à praia porque vieram parlando, parlando, mais com os braços do que com a boca, eu já me vejo próximo ao fim da tarefa semanal de preencher este espaço generoso, conversando com meu hipotético leitor.

Claro, não é sempre que se pode fazer como hoje, em que imitei conscientemente aquele tipo de orador, que ao final do discurso, se se perguntar de que tratou,  tanto ele quanto os ouvintes terão dificuldade em responder.

Acho que hoje  desanuviei um pouco o espírito, porque se há coisa que não nos falte neste nosso Brasil, neste nosso São Paulo, nesta nossa São José do Rio Pardo, nesta nossa vida social, familiar e pessoal são motivos de anuviar. Se não nos dermos conta disso, poderemos até precisar do socorro poético de Olavo Bilac (1865 – 1918) em seu esquecido soneto alexandrino Benedicite (= bendizei, em latim). Depois de seu louvor a quem fez o fogo e o teto, a quem uniu a charrua ao boi, ao que encontrou a enxada  e tratou do campo, ao que forjou o ferro, ao que ideou o lar, o berço e o jazigo, ao que urdiu o fio, ao que achou o alfabeto, ao que deu a primeira esmola, ao que se pôs a navegar, a cantar e a tocar, ao que domou o raio e inventou o avião, Bilac conclui que o mais bendito de todos é aquele  que descobriu a  esperança, a divina mentira, que deu ao homem o dom de suportar o mundo!

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Tenho escrito, por hoje.

 

05/10/2013
emelauria@uol.com.br

 

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