O começo e o fim da guerra

 

Hoje, terça-feira, bem cedinho, o rádio já lembrava: há setenta anos, começava a Segunda Guerra Mundial, com as tropas alemãs invadindo a Polônia, tanques de guerra enfrentados pela valente, imponente e impotente cavalaria. Um passeio militar, como seria em todo o avanço nazista através da Europa. Se Hitler não tivesse invadido a União Soviética, sei não...

1 de setembro de 1939. Não me parece que foi ontem, porque eu estava na flor dos sete anos e mal tomava pé não digo do mundo, mas de minha cidade, de minha rua, do casarão da Siqueira Campos, onde estou até hoje, transformado em nossa casa de morada fazia apenas dois meses e pouco.

A guerra nos chegou pelo rádio, mais precisamente pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, quem sabe pelo Repórter Esso – o primeiro a dar as últimas... Talvez não. Desconfio que esse noticiário tenha surgido um pouco mais tarde.

Chegava mais lentamente pelo jornal, um luxo de que me beneficiei pela meninice toda. Meu pai assinava o Diário de S. Paulo, não esse que existe por aí, mas outro que sucumbiu à passagem do tempo.

 A distribuição aos raros assinantes do jornal era feita pelo Correio, no caso de nossa rua pelo Sr. Zequinha Guimarães, o calmo carteiro  de tantos anos, que passava por aqui  lá pelas quatro e meia, cinco da tarde, com seu passo cadenciado e curto. Entregava o jornal (menos às segundas-feiras) e, vez por outra, uma carta, um convite. Daqui, ele voltava, porque éramos os últimos beneficiários da entrega domiciliar.

Seu Zequinha, José de Souza Guimarães, um fluminense radicado por estas bandas, casado com D. Teresa Béber, que chegaria lúcida e disposta a mais de cem anos de idade. Seu Zequinha e dona Teresa, pais de José (que também seria carteiro), de Fausto e de Nazareth, amiga de Marina e nossa colega por tanto tempo. No final deste  conturbado 2009, nossa raleada turminha da Escola Normal, se tiver coragem e disposição, poderá comemorar sessenta anos de formatura.

 Seu Zequinha, que uma vez encabeçou movimento popular para se  dar  sepultura digna a Ananias Barbosa, o dono do  Hotel Brasil quando do Episódio Republicano Rio-Pardense de 11 de agosto de 1889.

Com o dinheiro arrecadado por seu Zequinha, construiu-se modesto jazigo, naquela rua principal  do cemitério que vai da entrada à capela de S. Miguel. Está lá, à direita,  para quem puder ainda ver, a foto  de Ananias, o barrete frígio, os dizeres esmaecidos de homenagem.

Eu era aluno do primeiro ano do Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues e iniciava a luta mais vã (no dizer de Carlos Drummond de Andrade) – a luta com as palavras, a luta pelas palavras.

E foi assim que comecei a tomar contato com  vocábulos estranhos, países estranhos, como Polônia e sua capital – Varsóvia;  Tchecoslováquia e sua capital – PragaIugoslávia e sua capital – Belgrado. Puxa! Como se modificou o mapa político da Europa! Esses dois países foram loteados.

 No decorrer da guerra, fui tomando conhecimento de coisas que pouco entendia: Linha Maginot, Adolf Hitler, füehrer, blitzcrieg, Dunkerke, Mussolini,RAF, raid, Winston Churchill, Franklin Roosevelt, Joseph Stalin...

Não sei bem por quê, tomei, desde o início do conflito, o partido dos Aliados (ingleses, holandeses, belgas, franceses, canadenses, australianos, norte-americanos). Os inimigos seriam de início alemães e italianos (o que nos causava grande aborrecimento) e depois os japoneses.

Lembro-me de ter por um tempo recortado  essas e outras palavras tão inesperadas, talvez por serem vocábulos que não entravam nas lições da escola.

Principalmente com a entrada dos Estados Unidos na guerra (dezembro de 1941), fomos avassalados por revistas lindíssimas, como Em Guarda, por filmes e mais filmes  em que  os Aliados sempre eram os bons, os justos e os nazifascistas (sic)  os maus, os injustos. Deles todos, vem-me espontaneamente à lembrança  A Ponte de Waterloo, em que Vivien Leigh e Robert Taylor fizeram mulheres, homens e crianças derramarem rios de lágrimas no velhíssimo Cine Pavilhão  XV de Novembro. Ah, a guerra separando pessoas, tornando-as infelizes! De cortar o coração.

Quando o Brasil entrou na  guerra (final de 1942), nosso senso de patriotismo chegou ao ponto máximo. Também, onde já se viu submarinos traiçoeiros afundando na costa brasileira desarmados navios mercantes nossos? O povo, principalmente do Rio e de São Paulo, exigiu a entrada do Brasil na guerra, embora se dissesse que o então presidente Getúlio Vargas tivesse muita admiração pelos regimes totalitários da Alemanha e da Itália. Só teria tomado partido depois que os americanos prometeram uma usina siderúrgica, a de Volta Redonda.

A Força Expedicionária Brasileira nos comoveu principalmente por dois motivos: tinha um hino belíssimo, com versos de Guilherme de Almeida e música de Spartaco Rossi, que D. Ada Parisi nos ensinou nas aulas de Canto Orfeônico; tinha ainda alguns pracinhas rio-pardenses. Um deles era nosso vizinho no Buracão – Aurélio Santurbano. Outro, Wilson Gonçalves de Faria, só o conheci anos depois, como inspetor de alunos, no “Euclides da Cunha”. Um terceiro era João Casagrande, que chegou a tocar um barzinho no centro da cidade. Os três morreram  jovens. Já como professor,  fui a Matão assistir ao enterro de Wilson.

Sabíamos, assim,  no começo de 1945, que a guerra na Europa estava no fim. Na Ásia não: esperava-se que por lá os combates se estendessem por muitos anos. Também, a destruição das cidades de Hiroxima e Nagasáqui  por bombas atômicas era coisa impensável não só para nós, adolescentes brasileiros, mas para o mundo todo.

Estávamos, em 1945,  na terceira série ginasial do “Euclides da Cunha” e havia uma dura prova de Ciências Naturais. O professor da matéria, médico brilhante e autodidata como educador, era o Dr. Neje Farah, que depois de muito bem explicar, muito exigia. E a matéria para aquela prova mensal seria sobre o corpo humano, sobre os ossos em especial – da cabeça aos pés.

Na manhã de 8 de maio de 1945 estudávamos na Biblioteca Municipal, que funcionava  na sala à direita de quem entra no prédio do Museu Rio-Pardense, à época destes acontecimentos ainda Prefeitura Municipal. Lá de dia era a Biblioteca; à noite, de quinze em quinze dias, a partir de 1947, funcionou também por muitos anos a Câmara Municipal. As vetustas  estantes, envidraçadas, de correr, eram de madeira negra. Nas paredes um belo óleo de Rui Barbosa; um de Campos Sales; outro, de ruim qualidade artística, Tiradentes com a corda no pescoço destroncado pela inabilidade do anônimo pintor. Mesinhas pretas, com apoio para os livros, cadeiras com altos espaldares e assentos de palhinha, moringas de barro, dizem que usadas como armas nos bate-bocas entre os vereadores. Pois bem: na manhã de 8 de maio de 1945, lá estudávamos uns quatro ou cinco meninos para a prova daquela tarde, quando alguém chegou com a novidade fresquinha:

- Acabou a guerra!

Ficamos felizes pelo fato em si. Felicíssimos  pelo apêndice da notícia: não haveria aula naquele dia e, por isso mesmo, adeus, prova de Ciências!

Eu não tinha ainda lido, aos treze anos, o Memorial de Aires, do velho Machado. Não conhecia, portanto, a reflexão do diplomata aposentado a propósito do que lhe passara pela cabeça quando das festas de 13 de maio de 1888, com a abolição da escravatura no Brasil:

Não há alegria  pública que valha  uma alegria  particular...

 

05/09/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

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