Preconceito de idade
 (74 e meio)

Do  jeito que o mundo vai, há que se ter cuidado com a idade. Tanto pode ser ofensivo ou elogioso você dizer “ele é tão jovem” ou “ele é velho”.

A saída pela tangente é perceber que quase tudo que se refira ao tema depende do emissor e do receptor. Para os muito moços, ninguém com mais de trinta é digno de confiança. Há até música pregando essa atitude mental. Para os velhos, todo o pensamento se dirige à confirmação de estranho  desejo: velho é quem tem cinco anos mais do que eu...

Nos países com longa tradição histórica, alcançar uma idade avançada sempre foi motivo de respeito e admiração. A Bíblia está cheia de referências à consideração que se deve aos velhos, mesmo se sabendo como o parâmetro de velhice é muito elástico. Se não fosse mais um símbolo do que uma comprovação, todo o respeito à velhice  estaria concentrado num Matusalém que, ao menos está lá escrito assim, viveu novecentos anos.

Mas não exageremos. No estágio atual do problema, não há dúvida de que um homem de cinqüenta anos ainda está longe da velhice, embora nem sempre tenha sido assim e embora assim não pensem os filhos e mais particularmente os netos. Muitos de sessenta conservam ainda belos traços de energia e juventude. Setenta anos – aí o carro começa a pegar. Por mais que nos digam que estamos bem, que nem mostramos o tempo que já vivemos ( isso entre os romanos chamava-se dolus bonus, uma espécie de mentira piedosa), --  chegar aos setenta é começar a atravessar o Rubicão e considerar que já estamos no lucro, na sobrevida, dizem os mais realistas.

O mundo, com o progresso da medicina e com a melhoria das condições gerais de progresso acessíveis a grande número de pessoas, está se transformando numa gerontocracia, em que os velhos mandam e em que as expectativas de se chegar bem aos oitenta, ou pouco mais, aumentam a cada dia. Até no Brasil, apesar do elevado número de homens moços mortos nas guerras não declaradas do trânsito e das drogas, a média de vida sobe constantemente – o que, para certos órgãos previdenciários, é a pior desgraça possível. Onde arranjar dinheiro para sustentar a legião crescente de aposentados candidatos à longevidade? Ou pior ainda: onde arranjar dinheiro para sustentar os pensionistas, ou seja, aquela legião de pessoas dependentes da aposentadoria alheia?

Não são poucos os casos dos que sobrevivem como aposentados mais tempo do que realmente trabalharam. Não faz muito, li sobre uma funcionária estadual aposentada aos cinqüenta e dois anos, fruindo agora seus noventa e cinco de vida. Ou seja, já recebeu  durante quarenta e três anos aposentadoria conquistada após trinta de trabalho e não demonstra a menor vontade de encerrar seu ciclo vital! O caso não é tão raro quanto possa parecer. E isso sem se contar com outras benesses que a lei permite, como, em certos casos,  a transferência da titularidade da percepção da aposentadoria para filhas, para netas. Ou ainda, os milhares de pensionistas que não se recasam civilmente para não perderem os benefícios originários do trabalho do cônjuge morto... É o que em outros tempos se classificava como sangria desatada.  Eta Brasilzão!

Volto ao filão do tema central: setenta anos no Brasil, para muitos efeitos, é a certificação da chegada à velhice. Funcionário público ou autárquico, na feliz comemoração de sua estréia como setuagenário, se for à repartição, nem encontrará onde registrar sua presença: terá caído na aposentadoria compulsória ou expulsória, como já dizem. Não precisará mais votar, não pagará mais certas anuidades e terá até benefícios de atenuação da pena, na infeliz hipótese de cometer algum delito...

Há pouco mais de um mês o grande professor de Literatura da USP, Alfredo Bosi, movia céus e terras na esperança de ver aprovada a tempo uma emenda constitucional que eleva de setenta para setenta e cinco anos a permanência voluntária do funcionário no serviço ativo. Sua angústia, tão diferente da de tantos que não vêem a hora de se aposentar e depois ficam coçando os cotovelos  nos bancos das praças públicas, sua angústia era estar às vésperas dos setenta e não querer nem pensar em interromper sua atividade de magistério. Acho que dificilmente ele deixará de ser atingido pelo rigor da lei, mesmo porque a respeito do assunto há argumentos fortíssimos na defesa da tal expulsória, neste nosso país de jovens desempregados. Existe para esses trabalhadores compulsivos a brecha de continuar no ensino particular.

Tomando-se como verdadeira a frase tão repetida de que idade é muito mais um estado de espírito, entende-se melhor a extensão do problema. A velhice, muitas vezes, não atinge a pessoa como um todo. Alguém pode ser velho de corpo e jovem de espírito, como tantos gostam de afirmar, mas também a recíproca é verdadeira: há jovens de corpo  e velhos no espírito, como há velhos no todo que se mantiveram jovens em itens específicos. Cada leitor que faça sua força para exemplificar esta minha afirmativa temerária...

Há pouco, morreu nonagenário, mas em plena produção intelectual, o jurista Miguel Reale. Ouvi-o proferindo uma conferência, já alcançados os oitenta e vários, e fiquei admirado não só de sua lucidez, mas também de sua fluência oral na defesa de pontos de vista jurídicos dos mais modernos e inovadores.

Tudo isso por causa de uma frase de nosso boquirroto presidente. A propósito de anunciado apoio de Itamar Franco à candidatura de Geraldo Alckmin, ele disparou um juízo de valor no mínimo discutível:

-- O homem com setenta e cinco ou setenta e seis anos pode dizer o que quiser!

Claro que os intérpretes bajuladores do presidente procuraram emendar o soneto malfeito, mas o que ficou nítido pelo tom da voz  e pela expressão facial do emissor é que, para ele, qualquer opinião de Itamar, a favor de um e por tabela contra outro, padecia de vício insanável: o instável e topetudo homem de Juiz de Fora  havia passado da idade da razão e a ele, por causa de sua idade, tudo deveria ser desculpado, desde babar na gravata ou molhar as calças até se colocar contra o candidato favorito na corrida de 1.° de outubro próximo. Na verdade, Itamar se revoltou contra a decisão de seu PMDB lulista que não levou em conta as pesquisas que o colocavam com oitenta por cento de intenções de voto para senador por Minas Gerais. O candidato será Newton Cardoso, adversário irreconciliável de Itamar.

Corre na internet carta aberta de Helena Armond (uma lúcida senhora com setenta e nove primaveras) dirigida ao presidente da República, nestes termos:

“A mim tudo deve ser claro, pois na obscuridade o mundo caminha e clareiras devem ser abertas. Gostaria de saber, com e pelos direitos de cidadã, o que Vossa Excelência  quis dizer nas entrelinhas: O homem com 75 ou 76 anos pode dizer o que quiser, dirigindo-se a Itamar Franco. Desqualificação? Elogio? Diante dessa terrível ante-sala das eleições, está me parecendo que foi para dizer que homem nessa idade é algo sem credibilidade... o que é lamentável. Não aguardo resposta quando me dirijo a quem se endeusa. Apenas acompanho a distância... resultados”.

Forte, não?

 

05/08/2006
(emelauria@uol.com.br)

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