Haja coração
Chile, quem diria As estatísticas e os retrospectos eram francamente favoráveis ao Brasil. Então por que aquele sofrimento todo, num jogo de muita sorte e de muita falta dela também? Coisas do futebol, dirão. Felipão pressentiu isso. O jogo do Brasil foi irreconhecível, aquela bola no travessão de Júlio César no finzinho da prorrogação, o gol mal anulado do Hulk, as bobagens do meio-campo, a caçada humana ao Neymar, o drama dos pênaltis. Uma sexta-feira, 27 de junho, inesquecível. Ave, César! Ave, Júlio César, o desacreditado goleiro salvador da pátria amada, Brasil! Eliminação em oitava de final, jogando em casa, seria demais para o dorido coração brasileiro.
Entrego o texto na quinta e você o lê no sábado Entre nós dois, o jogo da sexta em Fortaleza – Brasil contra a Colômbia. Que terá aprontado contra nós aquele belo, elegante, fino jovem chamado James, que me lembrou o nosso Richard Petrocelli de cinquenta anos passados? Richard acertou diversos gols do mesmo estilo daquele marcado pelo colombiano contra os uruguaios: de costas para a meta, mata a bola no peito, vira-se rápido e, sem a deixar tocar o solo, fuzila o atônito goleiro. Achei este o ponto mais bonito da Copa, só comparável a dois outros: àquele sem-pulo que um anônimo australiano acertou na veia. O outro gol lindo foi do holandês Van Persie, de cabeça, dando uma paradinha no ar, como só fazem beija-flores e o fez Dario, aquele centroavante convocado para a Seleção por um presidente da República. O técnico João Saldanha não suportou a intromissão e perdeu o cargo. Alguém se lembra?
Vaias diferenciadas Os escribas do governo federal quiseram fazer o povão crer que as vaias contra a presidente Dilma na abertura da Copa foram obra da elite branca. O chefe da Casa Civil, que nada tem de bobo, logo desmentiu e disse que os governantes estão mal informados a respeito dos sentimentos da nação. Há muito motivo para vaias, mesmo, garante ele. Outra vaia mal interpretada foi aquela que ensurdeceu o Mineirão logo depois da execução do hino chileno. O que milhares apuparam foi a usurpação de um dos inventos dos brasileiros nesta Copa: continuar cantando o Hino Nacional a capela, depois dos míseros segundos cronometrados pelo abominável padrão FIFA. Os chilenos roubaram a feliz ideia e por isso, só por isso, foram vaiados.
Se soubessem o que cantam Se a letra do nosso hino (que belo cacófato: nó suíno!) fosse mais fácil e os brasileiros entendessem o que cantam, o entusiasmo seria ainda maior. O que há de má interpretação na letra de Osório Duque Estrada atinge as raias do anedótico. Muita gente acha que o nome do Hino é Virundu, deturpação fonética de Ouviram do Ipiranga... Veja como fica o começo do poema, postas as suas palavras numa ordem mais natural: As plácidas margens do Ipiranga ouviram o retumbante brado de um heróico povo. Ainda assim, quase ninguém sabe o sentido de plácidas, retumbante e brado. Não bastasse tanta erudição, ainda as pessoas têm dificuldade em assimilar uma figura de estilo chamada prosopopeia ou personificação, presente no fato de se dizer que as calmas margens do (riacho) Ipiranga ouviram (ação humana) o forte grito de um corajoso povo. Mais para a frente, há muito mais coisa para comentar e entender na letra, resultado de um concurso público realizado para as comemorações do centenário da independência do Brasil, em 1922. A música, de Francisco Manuel da Silva, então diretor da Escola Nacional de Música, é de 1831.
A seleção dos sonhos Pelo voto, cerca de setenta especialistas em futebol escalaram a seleção brasileira ideal, não considerando as diferentes épocas em que brilharam os escolhidos, mas respeitando os espaços do campo em que jogavam. Deu este time sem dúvida imbatível: Gylmar ; Carlos Alberto Torres – Aldair – Mauro Ramos – Nílton Santos; Falcão – Didi - Pelé; Garrincha – Romário e Ronaldo. Alguém se atreve a mudar?
Dia nenhum sem susto algum Não é para se declarar ao menos solidário com o que seleções eliminadas nas oitavas de final têm passado de dor, angústia, esbanjando ardor patriótico? Os mexicanos, que deram aquele trabalhão aos brasileiros, estavam todos lampeiros à altura dos trinta e oito do segundo tempo: venciam a temida Holanda e só esperavam a passagem de uns minutinhos para se entregarem a efusivos abraços e beijos. De repente, não mais que de repente, um laranja-mecânica acerta um chutaço de fora da área e empata o jogo. Puxa vida, pensam os bravos astecas, agora é aquela chatice de prorrogação e, quem sabe, disputa nos pênaltis. Antes fosse, antes fosse. Outro holandês, o carecão, no auge dos trinta anos de experiências e malícias, cava uma falta dentro da área. Foi o que se viu. Em dez minutos a viola mexicana ficou em cacos. Jogadores e o técnico deles, gordinho, falante, papudo deram adeus às armas. E os gregos? Deu pena dos gregos. No jogo com os costa-riquenhos, eles se esforçaram mais do que o mensageiro que correu quarenta e dois quilômetros para dar uma boa notícia ao povo ateniense sobre batalha vencida contra os persas em Maratona (490 a.C.). O bravo corredor cumpriu a obrigação e caiu mortinho da silva. Ninguém ainda morreu nos campos brasileiros, mas quase. E a Argélia dando aquele cansaço nos alemães? Enfim, uma Copa com sangue, suor e lágrimas, em que ninguém se classificou fácil para as quartas de final. Sem uma boa dose de sorte, a Argentina não teria passado pela Suíça; nem a Bélgica pelos Estados Unidos. Uma Copa de mexer com os nervos, de arrebentar com os prognósticos, de completo desrespeito a prévios favoritismos.
Os oito mais Chegar às quartas de finais de uma Copa é sonho que poucos países podem alimentar. A FIFA tem duzentos e quatro filiados (mais que a ONU, com cento e noventa e um). Deles saíram os trinta e dois que vieram ao Brasil. Foram eliminados dezesseis na fase classificatória e mais oito nas oitavas. Sobraram oito: Brasil, Argentina, França, Alemanha, que já conquistaram campeonatos, mais as calouras Bélgica, Colômbia, Costa Rica e Holanda. No Brasil vigora uma cruel verdade: só vale a pena se for campeão...
05/07/2014 |