Valorizando a expressão oral

 


São José no alvorecer do dia 04/07/2008
Márcio José Lauria Filho

 

Em camadas mais simples da população domina arraigado preconceito contra o ato de se falar com alguma correção. Já não digo de escrever, que aos poucos se transformou em atividade muito rara, desconhecida pela grande maioria. Com a permissividade do e-mail e do Orkut, então, quase ninguém se preocupa nem com a expressão mais comum da correção frasal – a ortografia. Colocação de palavras na frase, concordância, regência  são tratadas com superior desprezo.

Pensando bem, esse preconceito vem de longe, desde escritores que queriam a todo custo forçar a existência de uma língua brasileira, desvinculada de qualquer compromisso com o português de Portugal. José de Alencar, o grande romancista romântico do século XIX, pensava assim; Manuel Bandeira, poeta dos mais apreciados, também encampou a tese e  fala em língua errada do povo –  língua certa do povo. Mário de Andrade foi outro defensor de uma língua nacional completamente divorciada das raízes portuguesas.

Quando se pergunta a um aluno (até de Faculdade) por que ele não se esmera no que fala, aplicando aquilo que estudou teoricamente, a resposta-padrão é:

- As pessoas caçoam de quem procura falar certo. Elas acham que se nós falarmos não como elas, que estudaram menos,  estamos fazendo pouco-caso delas...

Na verdade, a questão é muito mais complicada, pois embora a pressão do ambiente cultural seja notável, uma das maiores causas de se falar mal reside na falta de leitura  e na falta de criação de um espírito crítico que supere essas resistências.

Atitude tão negativa e descuidada em relação à importância da boa expressão oral, além de fruto do que as pessoas ouvem em casa e nos meios de comunicação a seu alcance, é ainda resultado do geral desmazelo de expressão observável no rádio e na televisão, parece que envolvidos em acirrada disputa de cada vez mais rebaixar o nível de seus programas. Aprende-se a língua através do ouvido, principalmente. Ora, se o modelo disponível é pobre na construção da frase, no vocabulário e até nos intuitos de longo prazo, fatalmente os novos ouvintes se darão por satisfeitos se falarem como “todos” falam. Até o estilo de representação televisivo chamado “naturalista”, em que cada ator sem nenhum preparo interpreta ou inventa suas falas como se estivesse em casa ou na rua, é cada vez mais responsável pela difusão e pacífica aceitação de drogas inomináveis, como os programas popularescos de auditório e de terríveis atestados de indigência intelectual, do tipo do Big Brother Brasil e outras baboseiras do gênero, tão ao gosto dos milhões de voyeurs insaciáveis.

Não há mais contundente forma de rejeição social do que a lingüística. Quando alguém se transfere de uma região para outra,ou mesmo de uma escola para outra, um dos obstáculos à sua integração em nova comunidade é sua maneira diferente de falar, o vocabulário específico de que faz uso, as formas regionalistas que incorpora ao seu arsenal de linguagem,  de erradicação muito difícil. É sabido que cada um de nós se considera um falante modelar, de forma que todas as manifestações diferentes de nossa própria norma para nós são motivo de estranheza, quando não de chacota. Os cariocas, por exemplo, caçoam abertamente da pronúncia paulista, melhor ainda, da pronúncia paulistana, com seu forte traço de italianismo prosódico.

A pronúncia acaipirada do interior de São Paulo faz as delícias de fluminenses e nortistas, pouco afeitos ao erre gordo de que nos livramos só com muito esforço. Quando alguém pronuncia Sanzé du Riu Pârdu, provoca muito riso no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco...

A rejeição lingüística é perversa, fazendo terrível mal às crianças e adolescentes que de repente se vêem discriminados pelo jeito de pronunciar, pelo vocabulário regional de que se valem.

A esse propósito li há muito um conto, “Gringuinho”,   do autor paranaense Samuel Rawett: relata o drama de um filho de poloneses que se muda para cidade com outro tipo de colonização. A professora, sem nenhum tato, logo nas primeiras aulas  quis testar os conhecimentos do menino e deu-lhe tarefa das mais difíceis: ler um trecho do livro adotado naquela sala. Pouco afeito ainda à língua portuguesa (em sua casa todos se expressavam em polonês), o menino pronunciou mal, engasgou, pulou, acabando por ser a massacrada vítima  de seus novos e impiedosos colegas, sob os olhares até complacentes da professora.

Voltou para casa arrasado, pensando até em abandonar a escola. Ao invés disso, arquitetou uma bela vingança, que acabou por lhe abrir o convívio mais sereno com os outros meninos. Ao ser de novo escalado para a leitura em voz alta (os outros já antegozavam risos e brincadeiras), o gringuinho tirou da bolsa escolar um livro, abriu uma página qualquer e a leu com desembaraço e emoção, ante os olhares de espanto dos colegas e da professora. O texto era em polonês! Ninguém entendeu nada do que disse, mas ficou provado que ele sabia ler (e bem) e que merecia o respeito de todos.

A Lingüística, como disciplina descritiva, diferentemente da Gramática, normativa, não faz distinção entre o que se convenciona chamar de falar certo e falar errado. De modo geral, ela apenas comprova que em tal época e em tal lugar se emprega esta ou aquela forma. Essa atitude, cientificamente correta  em escala globalizante, vem contudo criando em nossas escolas, mormente as públicas, o cômodo e falso entendimento de que os alunos hão de se expressar com naturalidade e desembaraço, sem maiores preocupações com o que a norma culta elegeu como certo ou errado, apenas seguindo o aceitável  num determinado meio, em dada época. O resultado dessa política de liberalidade no falar e no escrever faz até algum sentido quando o aluno não alimenta aspiração alguma de continuidade dos estudos ou de ascensão social. Então, pobres daqueles que, oriundos de escolas rurais  ou quase (como temos em nossa região), concorrem ao ingresso numa escola de padrão mais alto ou pretendem sucesso na prestação de concursos públicos, onde impera o mais acirrado tradicionalismo gramatical, com questões elaboradas  no intuito não de medir  conhecimento, mas de detectar o que o candidato não sabe...

Vale ressaltar que não são raros os exemplos de professores que,  em contato muito prolongado com pessoas pouco hábeis no manejo lingüístico,  acabem falando como essas. Ao invés de ensinar, são ensinados. Ao invés de convencer, são convencidos.

Tem sido evidenciado que nossas escolas públicas eliminaram, por orientação superior  ( e ponha-se “superior” nisso), grande parte daqueles  obstáculos que, em outras eras, se diziam exercícios de casa, chamadas orais, avaliações mensais, provas parciais, exames finais, exames de segunda época, reprovações ...

Hoje é cada vez maior a possibilidade de um aluno semi-analfabeto chegar à faculdade, formar-se nela  e depois exercer tarefas magisteriais ou profissionais que exigem conhecimentos mais fundamentados, pesquisa permanente e a consciência de ser o ensino tarefa das mais importantes  em todos os países que almejam melhoria de nível cultural, técnico e científico de seus jovens, além de veículo transmissor dos valores de cidadania e solidariedade social.

Ao que parece, não é isso que vem acontecendo entre nós: educadores acomodados em disposições vigentes no ensino público acabam consentindo em que alunos despreparados cheguem ao final do ensino médio e do ensino superior, com isso inflacionando o País  com outros profissionais de limitados horizontes na cultura e na educação, encarregados por sua vez de transmitir a novas gerações um mínimo de conteúdo e até um mínimo de adequação sociocultural, criando condições para o evidente rebaixamento da qualidade da inserção social.

Quando em testes de capacidade de compreensão de leitura os alunos brasileiros são os últimos colocados nas comparações internacionais, não se trata de mero acaso ou de falta de sorte: a praga de não se saber ler expandiu-se por todos os quadrantes do Brasil e deixou, há muito, de ser problema apenas escolar. A falta de leitura, por abolir a reflexão,

contaminou os valores éticos, os bens culturais, o comportamento social e eliminou as melhores expectativas de um salto de qualidade que tire o Brasil da indigência física e mental que marginaliza parcelas muito expressivas de nossa população.

Tenha o eventual leitor a certeza de que nesta exposição está muito mais do que a opinião quem sabe pessimista de um professor na luta educacional há bem  mais de meio século.

 

05/07/2008
(emelauria@uol.com.br)

 

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