Falar sem nada dizer

Atravessamos muitos de nós um momento dilemático do ano em curso: falar ou não de futebol.

Enquanto as disputas são clubísticas ou regionais, quase sempre acaba prevalecendo ou a preguiça ou o bom senso e vamos deixando o nobre esporte bretão de lado, como objeto de nossas preocupações jornalístico-literárias. Por exemplo, nada falar hoje da espetaculosa desforra do Corinthians sobre o Santos, no domingo passado, é antes de tudo uma vitória do bom-senso, da modéstia, de espírito de paz. Mas não falar da Seleção (assim com respeitosa inicial maiúscula) às vésperas de Copa do Mundo já é prova de autodomínio, de acurado senso crítico.

Também eu, apesar do arraigado corinthianismo, sou um dos milhões de técnicos favoráveis à ida do Ganso santista à África do Sul. Não só ir, mas jogar, recusar-se a obedecer ao técnico em momento de burríssima decisão. Se for o caso, entrar à força no lugar do Kaká, acometido de estranhas dores pubianas.  O Ganso é bom, mesmo, tem personalidade, consistência, visão de jogo. Por outro lado, Dunga, à semelhança de Pascal, mostra que a razão tem razões que o próprio coração desconhece. Além do mais, como decretou o tricolor fluminense Nélson Rodrigues, a Seleção é a Pátria em chuteiras, ou seja, coisa séria, seriíssima. E olhe que ele nem pensava nos efeitos colaterais do futebol nos férteis campos dos negócios, no enriquecimento rápido de um Ronaldinho Gaúcho ou de um imperador Adriano, de repente, não mais que de repente, montados em milhões de euros, dólares, reais e não sabendo bem o que fazer com eles, a não ser transformá-los em comidas, bebidas, baladas, farras grossas... Para ele, Nélson, ganhar um campeonato mundial – o primeiro na Suécia, em 58 – serviu principalmente para livrar os brasileiros do triste complexo de vira-latas , pelo qual tudo que era estrangeiro havia de ser bom, e tudo que era nacional nada devia valer.

Duro, duríssimo é suportar a imprensa falada, escrita e televisionada nesta enfadonha fase de precisar fabricar notícias quando elas quase não existem, até por razões de estratégia. Que técnico envolvido na Copa vai ficar falando de seus planos, de suas armas secretas, de suas frustrações? Que terão os jogadores para revelar aos repórteres nestes dias de aprimoramento físico, fortalecimento espiritual (!), aprendizado de companheirismo, que precedem o início dos jogos? Só darão o recadinho encomendado pelo inevitável professor que os orienta. Daí essa diuturna criação de pequenas mentiras ou pequenas inverdades chamada factoides. (N.B. – Os vocábulos portadores do ditongo –oi – levarão acento agudo se forem abertos e oxítonos. Assim:  herói, dodói, mas celuloide, eu apoio, tramoia, porque se trata de termos paroxítonos... O mesmo ocorre com o ditongo –ei- : ideia, assembleia, plateia, mas réis, pastéis, aluguéis.   Fácil, não?)

Então é aquela patacoada sem fim de suposições sobre a escalação do time, de brigas e rivalidades entre os jogadores, de contusões novas e antigas, de hipotéticas e futuras mudanças de clubes, e por aí a fora.

Ao fim e ao cabo, ruirão as previsões, os palpites mais abalizados não se confirmarão, esperanças cairão por terra, figuras apagadas ganharão luz própria...

E assim, por causa da Copa do Mundo, vive-se um momento de enorme desperdício de palavras, de escritos, de palpites. A vitória total do que os teóricos chamam de linguagem fática, quer dizer, do uso da palavra que nada diz, do mais puro blá-blá-blá.

Um parêntese pertinente: você estranhou a grafia blá-blá-blá ao invés de blablablá ? Pois eu também, Tanto que fui ao novo Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras conferir. Que bagunça o emprego do hífen em nossa língua, hem?          Saiba que agora se escreve mão de obra, lua de mel, pão de ló, pôr do sol, mas obra-prima, lírio-do-mar... Alguns postos da hierarquia militar também perderam os hifens: general de exército,  almirante de esquadra, capitão de mar e guerra. Tenente-coronel não, assim como major-brigadeiro. Por quê? Mistérios, mistérios. Não se esqueça: palavras paroxítonas terminadas em –n- perdem o acento no plural: hífen – hifens; abdômen –abdomens. 

Se for feita uma pesquisa pelo país todo, com  certeza dará que uns 82% (não necessariamente os mesmos admiradores incondicionais do querido presidente) creem que o Brasil será hexa este ano. Não sei se os que me leem pensam no mesmo modo.

(Aqui está o corretor ortográfico me azucrinando porque não coloquei acentos em creem e leem. Eles caíram mesmo não só nestes dois verbos, mas também em veem e deem. Acho também muito econômico isso de diminuir hexacampeão para simplesmente hexa. Econômico e erudito. Qualquer um do povo sabe que hoje o Brasil é penta, como já foi tetra... Incrível, não? Saber contar em grego... Se for hexa este ano, sem dúvida será hepta em 2014, no Maracanã. Em seguida  será  octo, enea, deca, hendeca... Depois disso, quem viver verá. Apenas mais um aditamento a tão palpitante assunto: o certo é dizer-se octogenário, e não octagenário;  octogésimo, e não octagésimo.)

 

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Alguém teve a pachorra de imaginar um manual universal do discurso político-tecnocrático, verdadeira joia (sem acento, aprendeu?)  de prolixidade e falta de conteúdo. São frases dispostas em quatro blocos. Mantida a ordem numérica, você poderá criar umas dez mil combinações  de um discurso pomposo e vazio, de grande utilidade na campanha eleitoral que se aproxima.

 

BLOCO 1:

Caros colegas – Por outro lado – Assim mesmo – No entanto, não podemos esquecer que – Do mesmo modo – A prática cotidiana prova que – Nunca é demais lembrar o caso e o significado destes problemas, uma vez que – As experiências acumuladas demonstram que – Acima de tudo, é fundamental ressaltar que – O incentivo ao avanço tecnológico, assim como

 

BLOCO 2:

A execução dos pontos do programa – a complexidade dos estudos efetuados – a constante expansão de nossa atividade – a estrutura atual da organização – o novo modelo estrutural aqui preconizado – o desenvolvimento contínuo das distintas formas de atuação – a constante divulgação das informações – a consolidação das estruturas – a consulta aos diversos militantes – o início da atividade geral de formação de atitudes,

 

BLOCO 3:

nos obriga à análise – cumpre um papel essencial na formulação – exige a precisão e a definição – auxilia a preparação e a composição garante a contribuição de um grupo importante na determinação – assume importantes posições no estabelecimento – facilita a criação – obstaculiza a apreciação da importância – oferece uma interessante oportunidade para verificação – acarreta um processo de reformulação e modernização

 

BLOCO 4:

Das condições financeiras e administrativas exigidas. – das diretrizes de desenvolvimento para o futuro. – do sistema de  participação geral. – das posturas dos órgãos dirigentes com relação às suas atribuições. – das novas proposições. – das direções preferenciais no sentido do progresso. – do sistema de formação de quadros que corresponde às necessidades. – das condições inegavelmente apropriadas. – dos índices pretendidos. – das formas de ação.

Dizem que esse tipo de manual surgiu numa revista governamental polonesa, mas tem valia em qualquer parte do mundo e pode ser aperfeiçoada por qualquer um desses marqueteiros que fazem a cabeça de tanto candidato a cargo eletivo. Ao fim, o pobre eleitor acaba escolhendo o melhor marqueteiro, não o melhor candidato.

Dois exemplos do emprego do manual:

  1. A prática cotidiana prova que a consolidação das estruturas assume importantes posições no estabelecimento das direções preferenciais no sentido do progresso.

  2. O incentivo ao avanço tecnológico, assim como o novo modelo estrutural aqui preconizado facilita a criação das condições inegavelmente apropriadas.

São possíveis cerca de dez mil combinações para um discurso solene e absolutamente inócuo. Tempo gasto para vencer as quase dez mil combinações: umas quarenta horas.

 

05/06/2010
emelauria@uol.com.br)

 

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