As coisas mudam

 

Meu avô materno, César Bertocco (1865 – 1950), foi dos primeiros a  adquirir, há mais de cem anos, um telefone. Vistoso aparelho de madeira, fixado à parede, bocal saliente de metal cromado, fone enganchado de tal modo em seu descanso, que quando dali retirado,  era para se  pedir uma ligação à telefonista.

Quem não tiver certa idade jamais compreenderá o solene ato que era rodar a manivela, ouvir o pronto da telefonista e lhe passar ou um número ou o nome do proprietário do telefone com quem se queria falar. Afinal, elas sabiam de cor e salteado todos os números, todos os assinantes. Também, quantos telefones teria a cidade? Algumas poucas centenas.

E você, que tem certa idade, não entendeu como se telefonava?

Então vamos por partes:

Era raríssima a casa particular que tivesse instalado um telefone, coisa muito cara.  Possuíam-no médicos, advogados, dentistas ou quem tocasse algum comércio, alguma atividade que dependesse de troca de informações. Meu avô tinha um negócio, armazém de secos e molhados, na Rua José Teodoro, lá no Buracão. (Já ouviu falar nisso? Vendia coisas como arroz, feijão, farinha – os secos, e querosene, azeite de oliva, cachaça – os molhados.)

Seu telefone, que eu conheci e cheguei com todo o respeito e certa comoção a usar quando menino, era um vistoso Kellog, alimentado por duas enormes pilhas bem visíveis. Seu número: 106, que se dizia um-zero-meia dúzia, para não haver enganos na audição, ainda precária.

- Pronto! Aqui é da casa de César Bertocco, telefone um-zero-meia dúzia. (Ainda posso rever  a saudosa tia Luiza Della Torre Bertocco atendendo a um chamado.)

Creio que ninguém por ali, perto da casa de meu avô, possuía telefone. Isso quer dizer que o aparelho 106 muitas vezes há de ter prestado relevantes serviços comunitários, porque não se haveria de negar seu uso até por estranhos em casos sérios, de urgência ou perigo.

Quem havia feito a ligação? Girando a manivela, alguém acionara  a central telefônica e pedira à telefonista em serviço que ligasse o seu telefone com o de número 106. A telefonista tomava o que hoje se chama um plugue e enfiava seu pino num orifício correspondente ao número solicitado. Se a hora não fosse de muitos pedidos ao mesmo tempo, ela podia acompanhar com interesse o que as duas pessoas diziam entre si. Ou seja: ninguém nesta pequena cidade era mais bem informado do que uma telefonista.

Se a ligação era interurbana, a demora podia ser de cinco, seis horas. Ou até de dias, quando temporais, ventanias ou acidentes derrubavam postes que sustentavam os fios telefônicos. Se o motivo do interurbano fosse caso de doença ou de aviso de morte, explicava-se isso à telefonista, que priorizava a ligação, diminuindo tanto quanto possível a espera.

Cheguei a ver em ação as derradeiras mesas manuais da Eticsa – Empresa Telefônica Irmãos Camargo, funcionando num sobradinho da Rua Francisco Glicério, logo abaixo  da atual estação da Vivo. Dois dos Camargos, Henrique e Roberto, demonstraram-me como era a precariedade do serviço, com aquela barafunda de fios emaranhados, isso exatamente no dia em que eu assinava o contrato de aquisição de um número dos primeiros telefones automáticos da cidade. Era um salto tecnológico notável: eu saía do meu velho 640 de manivela, conseguido a duras penas, para o moderníssimo 3-755, de discar, sem a intervenção de telefonista.

Demorou a chegar a São José a maravilha do celular, de preço inicial  exorbitante. Quem pôde, logo o comprou, embora ele não conseguisse falar e/ou ser ouvido em muitos lugares. Bastante volumoso, ainda precisava-se direcionar sua pequena antena para uma torre repetidora. Nas baixadas ele falhava; se o tempo estivesse carregado, ele captava as estáticas; muitas vezes saía do ar, sem essas nem aquelas.

Mas era uma glória ser pioneiro na posse e propriedade de um celular, novo indício de status social. Como houve exibicionistas! Homens e mulheres de repente paravam na rua, digitavam uns números (ou fingiam fazê-lo) e, com fisionomia carregada, como se estivessem decidindo o destino do planeta, ficavam um tempinho ali, causando inveja e despeito a uns tantos basbaques. Um filme italiano, dos mais críticos que já vi, mostra uma mulher falando exaltadamente com ninguém  ao celular num clube da pequena cidade, em lição explícita de cabotinice. Quem viu o triste Parente é serpente deve se lembrar da cena.

Hoje é o que se vê. Celular virou uma geringonça  tão cheio de recursos, que serve até de telefone. Há pessoas que ainda gostam de exibi-lo, embora não poucas vezes o seu aparelho mereça o espirituoso apelido de pai de santo, isto é, só recebe mensagens. Afinal, só se paga o que se  transmite.

 

05/03/2016
emelauria@uol.com.br

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