Pedindo ano-bom
Em outros tempos, pedir ano-bom era prática a seu modo semelhante ao halloween americano, ao menos num aspecto: não só os necessitados pediam, qualquer criança se julgava no direito de bater de porta em porta em busca de algumas moedinhas. Nem todos os pais permitiam que seus filhos se metessem nessa aventura, por alguns considerada desmoralizante e só autorizavam visita a casas de parentes chegados ou de amigos muito amigos. Também eu, até os oito ou nove anos, pedia ano-bom sob rígidas condições: podia ir à casa de tios e de padrinhos. Nem sempre a visita rendia dinheiro, mas balas, doces e até sorvetes, nas poucas casas que já dispunham de cobiçadas geladeiras. Ah, naturalmente era de rigor a ida à casa de meu avô materno César Bertocco, no Buracão. Ele me parecia velhíssimo, remanescente da vida, mesmo, com seus setenta e poucos anos. A cena se repetia cerimoniosamente a cada ano-novo: ele ficava sentado em saleta contígua a seu quarto, lugar de acesso vedado a quase todas as pessoas, principalmente a crianças. E ali, como que entronizado, sem dizer palavra, recebia um por um seus netos que lhe pediam a bênção, beijavam sua mão estendida e aguardavam o lento gesto de ele meter a mão no bolsinho do colete (não o do relógio!) e de lá tirar a moedinha de quinhentos réis ou mil réis, com a dupla efígie de D. Pedro I e de Epitácio Pessoa, comemorativa do centenário da independência brasileira. Mil réis (destão na pronúncia relaxada das crianças) eram um dinheirão, se comparado ao reles tostão, que valia cem réis e com o qual se comprava picolé no botequim do Mingo Baldo, ao lado do Cine Pavilhão 15 de Novembro. Ao fim do dia primeiro de cada janeiro, eu podia ter juntado uns cinco ou dez mil-réis, em moedas, se tanto, que minha mãe logo requisitava e me mandava colocar, uma a uma, na estreita fenda de um cofrinho qualquer, para comprar alguma coisa útil. Aqui na Várzea, antes da construção dos conjuntos habitacionais lá para as lonjuras do Cristo Redentor, já às seis horas da manhã bandos de crianças vindas dos cortiços e tristes casas do Bonsucesso batiam insistentes de porta em porta, não só pedindo, mas exigindo seu ano-bom. Agora me lembro: não eram só crianças, porque famílias inteiras se lançavam com estratégia militar ao peditório, que acabava sendo rendoso e capaz de melhorar por uns tempinhos a vida delas todas. Hoje o pedido de ano-bom perdeu muito de sua intensidade. Sempre há quem às seis da manhã, indiferente ao sono de alguém que talvez tivesse acabado de chegar do réveillon, toque insistentemente as campainhas, bata palmas e clame em altas vozes, como se receber um agradinho no primeiro dia do ano fosse indício forte de que dali pra frente pudesse ser tudo diferente. Neste 1.° de janeiro de 2013, num horário bem depois da madrugada, talvez com saudade da infância, religuei o interfone desligado propositadamente de véspera e andei distribuindo moedinhas de um real a umas tantas crianças, menos para um homem de seus cinquenta e muitos anos, com quem troquei dois dedos de prosa. Meio envergonhado de estar a bem dizer mendigando, ele me explicou que apenas aproveitava aquela data para juntar um dinheirinho porque na casa dele a coisa estava preta. Chorou miséria, falou da filharada, da falta de emprego fixo, disso, daquilo. Dei-lhe uma cédula de certo valor, que aos olhos dele pareceu um ano-bom imerecidamente gordo. Precisei até insistir com ele para que a aceitasse. Ele me agradeceu com todas as bênçãos e votos possíveis, o que para mim soou como um ano-bom que eu tivesse ganhado.
MEU AVÔ Bela figura a de meu hoje relembrado avô César Bertocco, que viveu entre 1865 e 1950. Não conheci minha avó materna Albina Carraro, falecida em 1930, de quem minha mãe falava todos os dias, com saudade e admiração pela sabedoria condensada em provérbios e frases feitas, citados sempre a propósito. O nome famoso da família Carraro foi uma escritora de assuntos escabrosos, Adelaide Carraro. Alguém de provecta idade e de leituras picantes deve lembrar-se do sucesso de sua literatura. Dizem que herdei de César Bertocco alguns traços físicos, a tendência a engordar e umas crises de artrite reumatóide. Poderia ter herdado coisa melhor, porque ele era homem de muitos bens, mas entre os italianos prevalecia sempre a tendência de relegar as filhas ao segundo plano, em favor dos filhos, do mais velho em particular. No inventário aberto com a morte de Albina Carraro, minha mãe só ficou com uma casa na esquina da José Teodoro com a Rua do Paraíso. Com a morte de César, houve muita discórdia familiar, que levou a desafeições de longa duração. Meu pai se indignou com doações feitas a uns em detrimento de outros filhos do finado. Dizem ainda que meu avô foi homem alegre, bonachão, bom dançarino – daqueles capazes de dançar, longe da pudica mulher, até furar a sola do sapato. E de beber vinho. Tenho na memória uma cena dele na esbórnia, sentado no meio-fio da calçada de seu negócio, bebendo com dois amigos, Pedro Merli e Emilio Perucci e cantando a pleno pulmões Giovinezza, giovinezza. Isso há mais de setenta anos. Pode ser que nesta reminiscência haja mais fantasia do que verdade. Tendo vindo para o Brasil com algumas posses, foi bom negociante, primeiro com um carroção puxado a burros (com o qual transportou pedra para os pilares da nossa ponte metálica) e depois como negociante de secos e molhados, lá no fim da Rua José Teodoro. Hoje, a casa que foi dele está dividida em cinco ou seis, com diferentes donos e diferentes aspectos. Quando passo por lá, vem-me à lembrança o forte cheiro de amoníaco da urina dos cavalos amarrados defronte ao seu armazém. Bem de vida e com os filhos encaminhados, voltou à Itália como turista com a mulher Albina e com o genro querido, Angelo Luigi Bianchin, de quem guardo saudosa memória. Trouxe de lá um mundo de coisas, como dois álbuns fotográficos de excelente material: Ricordo di Genova e Ricordo di Venecia. Está muito bem conservado e na posse de minha irmã Maria Thereza um baú de viagem, feito de pinho-de-riga com ferragem digna de uma arca de tesouro espanhol. Lembro-me bem da velha casa da José Teodoro, da vastidão de seus cômodos, da banheira de folha de flandres, da cozinha velha, transformada em depósito de tonéis com diferentes bebidas. Foi lá que tomei meu primeiro porre – de uma bebida doce-amarga chamada fernet, que me valeu pedagógicas cintadas de meu pai. Foi de tristeza permanente o fim de vida de meu avô. Só o conheci nesse estado. Procuro o texto “Meu avô”, que inseri em meu primeiro livro, Tempo & memória, de 1986, e o releio com vagares. Está bem melhor do que esta notinha de hoje. Sinal dos tempos.
05/01/2013
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