Picadinho cinco-estrelas Não era propriamente nem um bebedor exigente nem um apreciador desses que distinguem safras, teores, propriedades e virtudes de quanto vinho, uísque e cerveja haja por aí. Ficava alheio a essas duras polêmicas que sempre envolvem os partidários da Brahma e da Antarctica, quando não aparece de quebra um admirador da Skol. Cerveja, para ele, mal servia para matar a sede, bebericar socialmente entre amigos, se possível com queijo, salame. Não gostava, para dizer a verdade. Vinhos, distinguia quase nada. No fundo, no fundo, era chegado a um rosé, o que para os conhecedores é pecado dos graves, que só se paga nas profundas do inferno. Em compensação, sabia algumas coisas algo teóricas, como a diferença entre whisky e whiskey. Esse detalhe, mais conceitual do que fonético, ele passava para frente quando tomava um raro pilequinho: - Whisky é escocês, irlandês, à base de malte; whiskey é americano, feito de milho fermentado. Um dia lhe perguntaram se destilado feito no Canadá era whisky ou whiskey e ele não soube responder. Da cerveja, sabia sua história perdida na noite dos tempos, acho que na Babilônia; o alto consumo per capita na Alemanha, Dinamarca e em Ribeirão Preto. Gostava da historinha do inglês bebedor dos bons que, um dia, levantou-se com dificuldade da mesa do bar e entornou todo o conteúdo de uma garrafa no vaso sanitário, explicando aos circunstantes: - Chega. Cansei de ser o intermediário. Comprar bebidas caras – isso não fazia. Tinha lá, como todo brasileiro cordial, suas garrafinhas de nomes estrangeiros e sabor nacional. Aí ganhou de amigo abonado um litro de conhaque Macieira, português, rótulo preto, com todas as aparências de legitimidade. O tal amigo não embarcava em contrafações paraguaias. Cinco estrelas, coisa fina e forte pra chuchu. Em dia de frio e chuva, depois de certa hesitação, abriu cerimoniosamente a garrafa, botou menos de dois dedos no copo e mandou goela abaixo, com um pouco de solenidade até. Afinal, era bebida de além-mar. Ofereceu uma talagada à mulher, que o rejeitou. À filha, que perguntou se podia misturar com guaraná. Muito mais pelo presumível preço do que pelo sabor, disse que não. Arrolhou muito bem arrolhada a garrafa e, se não a escondeu no fundo de um armário com segredo, protegeu-a o mais que pôde. - Isso é para se tomar de quando em quando, como remédio, quase. Esqueceu-se do Macieira porque bebida para ele tinha passagem livre e porque era rara a conjunção de dias frios e chuvosos. - Me passa mais um pouco desse picadinho, que está muito bom. - Picadinho... Você não pode dizer que está comendo um estrogonofe, seu ingrato? Carne boa, champignons, creme de leite, tempero no capricho ... – era a mulher, ressentida com o rebaixamento do nome do prato. (De strogonoff para estrogonofe, tudo bem. Inevitável o aportuguesamento, mas de estrogonofe para picadinho, isso não!) - Está bem. Então me passa esse estrogonofe. - Ficou bom? - Se ficou. Pode repetir sempre, carregando nos cogumelos. - Cogumelos não: champignons... (Outra vez a mulher, que acreditava no poder encantatório de certas palavras.) Foi antes de um jantar sem estrogonofe, mas com frio e chuva, que ele se lembrou do Macieira. Meteu a mão no quase esconderijo do armário fundo. Procura que procura, e nada. Apelou então para a mulher: - Você trocou meu Macieira de lugar? - Macieira, que macieira? - Aquele de rótulo preto, não se lembra? Com cinco estrelas... - Hã, sei. - Trocou ou não trocou? - Hã? Ah, é. Troquei. Usei. - Como usou, mulher? - Usando, ora... - Vai dizer que agora deu de beber escondido. - É isso mesmo. Eu, você, todos desta casa. - Como assim? Trate de explicar bem explicadinho. (E aí ele foi ficando brabo de fato, capaz até de umas palavras ásperas.) - E por que é que meu ESTROGONOFE, que você teve a coragem de reduzir a picadinho, ficou sempre tão gostoso? - Por quê? - Porque foi nele que eu gastei a sua bebida portuguesa, viu? - Mas você não sabe que uma dose do Macieira custa mais caro do que um quilo de picadinho? - Custa? - Custa, sim senhora... E daí? Que ficou caro, ficou. Mas picadinho cinco-estrelas bem poucos tinham comido. (1989)
TAPA-BURACOS (I) Reflexão acerca do irrepetível Em Minas, além de Belo Horizonte, era sábado à tarde e ventava. Estávamos no alto de um monte, a cidade lá embaixo, inesperada na sua grandeza. Do lado oposto, um campo. Apenas um belo campo dividido por uma cerca de arame farpado, uma árvore no primeiro plano. Era inverno e ventava. Além da cerca, além da árvore, ondulava um capinzal florido de roxo. Depois, o desdobrar de outros campos, de outras montanhas. Guardamos conosco a fotografia do campo delimitado por uma cerca de arame farpado, com uma árvore no primeiro plano, o capinzal inclinado à passagem do vento. Mas certamente não voltaremos àquela paisagem, que captamos em seu exato e efêmero instante. Existiu apenas porque era sábado de inverno e porque estávamos lá. (1983)
TAPA-BURACOS (II) Joio & trigo Meu filho, num disponível tempo de férias, limpou e contou, um a um, os meus livros. Apresenta-me com certo espanto, o número exatíssimo, que envolve milhares, centenas, dezenas, unidades. Olho-os então, repostos na disciplina das estantes. Se não os li todos (porque há livros que não se leem), consultei-os muitas vezes, ao longo de tantos anos. Poucos, muito poucos, os que eu fruí até o cerne. Pensando bem, eu, como qualquer pessoa, passaria otimamente apenas com a quebra da alta numeração. Não pode haver no mundo – quanto mais na minha biblioteca – sequer duzentos livros importantes de verdade. (1975)
04/12/2010
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