A riqueza do homem & outros temas palpitantes
A RIQUEZA DO HOMEM Saber como as pessoas ficam ricas dá sempre ensejo a pesquisas e reflexões. De Henry Ford a Bill Gates, de Henri Nestlé ao sultão de Brunei, os bem-sucedidos de todos os tempos variam as fórmulas de seu êxito pessoal e de sua ascensão àquele seleto grupo de homens classificáveis como bilionários. Mas sei de um caso tipicamente local do sujeito, hoje próximo aos oitenta anos, que, se não se tornou nem milionário, enricou economizando alfinetes. Como algum leitor mais antigo deve recordar, “ter para os alfinetes” era expressão até depreciativa que traduzia esse tipo de parcimônia sem resultados apreciáveis, porque alfinete (não digo o de pressão, mas o de cabeça) era algo tão barato, que nem tinha preço individual. Comprava-se e ainda se compra por preço irrisório um milheiro deles, cinco milheiros. Não torno público, em respeito à sua discrição e modéstia, o nome deste nosso conterrâneo que amealhou fortuna apenas guardando alfinetes encontrados aqui e ali, no chão, em seu ambiente de trabalho. A bem da verdade, ele recolhia ao fim de cada tarde não só alfinetes, mas também botões desaparelhados, restos de linha, sobras de entretelas, um ou outro enchimento, retalhinhos de tecidos diversos... E entra ano, sai ano, ele foi confirmando o velho provérbio que tão bem sintetiza o senso de economia: de grão em grão a galinha enche o papo. E como encheu! Nosso conterrâneo montou estabelecimento próprio, enveredou com sucesso pelo ramo do entretenimento público, mais precisamente o da mídia impressa. O único desgosto que ele teve por causa de seu paciencioso processo de juntar coisas, em si de nenhum valor, foi, muito mais tarde, saber que o filho de seu antigo patrão, tomando conhecimento de como o aplicado empregado progredira tanto na vida, teve um infarto fulminante e veio a falecer, ainda em tenra idade. O que é que se há de fazer, não é?
OS ANTÚRIOS DE MUITA BELEZA Casa Branca, cidade tão próxima e muito querida por todos nós, goza de justa fama entre outras razões pelas suas jabuticabas de insuperável aspecto e sabor. As frutinhas de lá têm tanta negrura e tanta doçura, que até mereceram figurar no brasão e na bandeira, conforme pude comprovar no agradável livro O Município de Casa Branca, de autoria do amigo e colega de magistério Geraldo Majella Furlani, companheiro no “Alexandre Fleming”, de Vargem Grande do Sul, e em nossa Faculdade de Filosofia. Quem me deu de presente um exemplar da segunda edição (2003) foi Sérgio Argeu Scacabarrozzi, ex-aluno e casa-branquense muito dedicado, que me visitou um dia destes. Mas não é das jabuticabas que quero falar, e sim dos antúrios, mais precisamente de uns colossais e coloridíssimos antúrios que minha finada tia cultivava no quintal de sua mais que secular casa, com todo o jeito de chácara, ali a uns passos da praça central. Obedecendo a rigoroso cronograma, um grupo de amigos lá se reunia para travar renhidas batalhas no jogo de buraco. Não era fácil ser aceito naquela seleta companhia, por certo muito mais exigente do que o nosso desorganizado Centro Cultural Batista Folharini. Daí a alegria do médico recém-chegado que, não tendo ainda a agenda cheia, podia dar-se àquele inocente prazer, porque ao que tudo indicava, só se jogava no mais puro leite-de-pato. Nos intervalos da jogatina, os freqüentadores do pano-verde, como Rui Barbosa gostava de denunciar, iam esticar as pernas no quintal imenso e muito bem cuidado. O médico deve ter ficado mesmo maravilhado com tudo o que viu ali, mas se impressionou sobremaneira com os antúrios em sua obscena beleza. A certa hora, perguntou em voz alta à minha tia, que tinha lá seus repentes do mais puro desbocamento: -- Dona Madalena, qual o segredo da vivacidade das cores desses antúrios? Naturalmente ele queria apenas uma explicação viável, como a fertilidade do solo, a constância do trato, quem sabe até a pureza dos ares, uma receita secreta, coisas assim. Mas minha tia achou que a curiosidade dele merecia melhor explanação. Chegou perto dele e lhe cochichou ele nem imaginaria o quê. O médico arregalou os olhos, raspou a garganta, ficou muito desenxabido e tratou logo de mudar de assunto. Os assistentes da cena fizeram de conta que nada viram, nada ouviram. Eu sei o que minha tia lhe disse ao pé do ouvido, porque ela já me dera a fantasiosa explicação, mas se eu a contar, a historinha perde toda a sua aura de inocente mistério.
DA ECONOMIA LEVADA MUITO A SÉRIO Nem podemos imaginar a que ponto chega o pão-durismo, a muquiranice, a avareza. Disso há exemplos universais, nenhum deles melhor do que o do Sr. Grandet, personagem do livro clássico francês Eugénie Grandet, do insuperável Balzac. Na hora de receber a extrema-unção, o velho ficou extasiado não com qualquer antevisão do paraíso, mas com o brilho da cruz que o sacerdote lhe apresentava para beijar. E morreu com a mão estendida, querendo tomar para si o dourado objeto e murmurando ouro!...ouro!... Tive um primo, já falecido, capaz de economizar (desnecessariamente, explique-se) até na ração diária de cigarros. Trabalhando em lugar sujeito a incêndio, acostumou-se a fumar somente à noite. Eram dois, não mais que dois cigarros, tragados prazerosamente, enquanto dava suas voltinhas burguesas em companhia dos colegas de sempre. Ora se deu que num desses momentos peripatéticos, meu primo foi tirar do bolso da camisa o primeiro dos dois cigarros e, que tragédia!, ele escapou-lhe da mão e foi cair dentro de um bueiro, desses bem fundos e protegidos com reforçadas grades de ferro. Fez-se de tudo para resgatar o precioso objeto de desejo, mas em vão. Felizmente meu primo encontrou solução para a inesperada perda. Dirigiu-se a um dos companheiros fumantes e lhe fez circunstanciada exposição assim resumida: -- Você bem sabe que trago meus dois cigarros, sempre. Você bem viu o que aconteceu com um deles. Um acidente. Só existe uma saída – você me dar um dos seus. -- Tudo bem. Eu lhe empresto um e amanhã você vem com três deles. -- Não! Isso não! Eu peço que você me dê um dos seus, porque de outro modo minhas contas ficarão muito atrapalhadas!
VIVENDO IRMÃMENTE Existem vocações muito fortes para tudo, desde profissões sonhadas e alcançadas ao custo de todos os sacrifícios, até irresistíveis tendências de não casar. Não são raros os casos de celibatários convictos, capazes de rejeitar “desejados tálamos”, na linguagem caprichada de Camões. Um amigo de meu pai era assim, embora não dispensasse uma boa companhia feminina. Resultado: um longo namoro acabou virando coabitação informal, cada vez com menos sinais exteriores de afeto. Não iam juntos a lugar nenhum, ou seja, comportavam-se como a maioria dos casados faz. Passaram-se anos, o amigo de meu pai manteve-se numa vidinha boêmia quase inocente; sua companheira continuou costurando, sempre residindo na casa do, digamos, noivo eterno. Até que ele teve um infarto daqueles e se foi, sem essas nem aquelas. A companheira manteve-se na casa onde viviam, porém, pressionada pelos parentes dele, herdeiros naturais do tio solteirão, teve de se mexer. Alguém a orientou a ingressar em juízo, pleitear a aposentadoria dele, legitimar a posse da casa de morada. Para isso lhe arranjaram advogado dativo, que nem se preocupou em instruir com mais cuidado a sua constituinte, tão líquidos e certos lhe pareceram os direitos da viúva de fato. Infelizmente as pretensões dela não prosperaram porque no início da audiência o juiz lhe perguntou: -- A senhora conheceu bem o Sr. Fulano? -- Sim, conheci. -- Teve constante relacionamento com ele? -- Sim, tive. -- E como era esse relacionamento? -- A gente vivia muito bem, como dois irmãos. -- Sempre como dois irmãos? -- Sempre como dois irmãos. Nada mais havendo a tratar, o juiz deu por encerrados os trâmites e não se falou mais no assunto. Ela acabou morrendo com dificuldades de manutenção, por excessivo amor às aparências sociais.
04/11/2006 |