Quem me marcou

 

Um dia destes, a convite de Eloni Junqueira Andrade, ex-aluna das mais aplicadas em tempos que vão longe, dei uma palestra a concluintes de cursos de ensino médio e integrado na ETEC de São José do Rio Pardo (Fundação Paula Souza). Para a organização do evento, Eloni contou com o apoio da Prof.ª Sandra da Silva Souza e da funcionária da biblioteca, Selma Cristina Magalhães.

O tema proposto foi uma espécie de estímulo e revalorização da por tantas formas esquecida leitura, dentro e fora da escola. Procurei tornar a exposição clara e participada, o que parece ter sido conseguido, porque a reação do belo auditório foi espontânea e natural.

Enquanto me preparava para aquela aula tão especial, fiz-me a pergunta que deu origem a este artigo: “Em meio a tantas pessoas com quem convivi ao longo de minha vida de estudante de grupo escolar, ginásio e colégio, quais me marcaram profundamente e me ajudaram na formação intelectual e, por consequência, moral e social? Fui escrevendo nomes e nomes, algumas dezenas  deles. Organizei uma lista provisória de uns tantos nomes, analisando um por um, ora retirando este, ora repondo aquele – até chegar a esta definição que agora torno pública.

Maria Leal, minha primeira professora assim que se iniciaram as aulas em fevereiro de 1939, no Grupo Escolar Cândido Rodrigues. Ela nos apanhou no recreio e nos conduziu em fila dupla à sala de aula. Achei-a delicada, bonita, atenciosa. Ela me fez gostar desde sempre da escola e criou em mim uma estranha vontade de que sempre o dia seguinte chegasse logo. Uma   semana ou dez dias depois de iniciadas as aulas, eu e mais uns poucos meninos fomos transferidos de sala, íamos para a classe de D. Cândida. Eu ainda via Maria Leal com sua bela figura, seus vestidos de linho, morando no Hotel Brasil. Um dia, ela sumiu para sempre. Para sempre, mesmo. Nunca mais tive notícias dela. Ela foi, sem dúvida, a minha primeira perda afetiva.

Cândida Marcondes Godoy, minha primeira professora pra valer. A sala de aula era a última à direita, no final do corredor que começava num vasto pátio central descoberto e protegido por uma balaustrada de grades de ferro com acabamento em madeira. Sem passar por nenhuma cartilha, comecei a ler e também a escrever a lápis. Livro usado em classe: O bom colegial, de Morel Marcondes Reis. Bem que eu gostaria de revê-lo, decorridos setenta e cinco anos. Alguém me dá alguma pista? Dona Cândida... Mantive por ela uma permanente e muito confessada admiração. Morava na casa de esquina da atual Avenida Eduardo Nasser com a Rua da Conceição, onde há um consultório médico.

Zita Villela, cara de brava, exigente. Iniciou-me na escrita a tinta, com caneta de madeira e pena de encaixar, que se molhava em tinteiro no meio da carteira dupla, enchido todo dia. Exigia que soubéssemos na ponta da língua até a tabuada do nove! 9X7=63; 9X9=81... Errou, levou castigo. Morava numa casa da atual Rua João Gabriel Ribeiro, onde se instalou um belo estúdio fotográfico.

Isaura de Paiva Manita, padrão de autoridade e competência. Passava problemas complicados. Ensinava a escrever cartas familiares, era exigente em ortografia. Estudamos nossa cidade, o estado de São Paulo, suas estradas de ferro, seus rios, sua história, entradas e bandeiras. O sistema solar e o corpo humano. Morava numa casa que até hoje pertence a familiares seus, na Francisco Glicério, logo abaixo de uma papelaria.

Laudelina Gomes de Oliveira, a disputadíssima. Os pais que a quisessem como professora de seus filhos se comprometiam a aceitar seus métodos de ensino, de disciplina, de exigências fora da sala de aula. Dava noções precisas de Português, Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais. Ah, também achava tempo para o Orfeão e Trabalhos Manuais. Com ela, meninos bordavam para “amaciar a mão” e não consideravam isso bullying. Fiz em classe um atoalhado de talagarça com lãs de variadas cores, usando pontos de haste e pontos de cruz. Devo a ela, e ao diretor Edésio Monteiro de Oliveira, o estímulo para fazer o curso de admissão no ginásio ao mesmo tempo que o quarto ano do grupo escolar. Isso em 1942, um trabalhoso ano: aulas do curso de admissão em sua casa, na Rua Benjamin Constant, onde hoje mora meu primo Hermenegildo Bertocco, das 7:00 (em ponto) às 10:30.  No grupo escolar, das 12:30 às 16:30.  Das 17:00 às 18:00, novamente em sua casa, para estudos de reforço. Aluno dela entrava direto no ginásio e sempre com as melhores notas. Um colega nossa obteve nota 6,5 no exame de Ciências. Levou uma bela descompostura na frente de todos do curso.

De 1943 a 1946, foram meus anos de ginásio, na única escola secundária da cidade, o Euclides da Cunha. Tive, já na primeira série, professores que me acompanhariam até o final do curso colegial, em 1949: Hersílio Ângelo (Português), Dr. Abdiel Cavalcânti Braga (Matemática), Vinício Rocha dos Santos (História), Odilon Machado César (Geografia), José Germinal Artese (Desenho), Dr. Mário Xavier (Francês). Laércio Barbosa foi meu professor de Latim nas quatro séries ginasiais. O que aprendi com ele me foi de extrema valia, tanto no estudo da Gramática Histórica Portuguesa, quanto nas aulas do próprio Latim, nas mais diversas ocasiões. Lembro que a última disciplina que lecionei no curso de Letras da UNIP, em 2008, foi exatamente o Latim. Já não se podia exigir em nenhuma faculdade o que antes nos era cobrado na terceira série ginasial. Tempora mutantur et nos cum illis: os tempos mudam e nós com eles...

No ano em que eu deveria ter-me inscrito no Clássico (1947), não houve número de alunos interessados na matrícula, tive de me inscrever no Científico, onde penei com Química (Dr. João da Silva Rocha), Física (Dr. José Ribeiro de Paiva, o Dr. Juquita), História Natural (Dr. José Reis Dias). O Dr. Abdiel assumiu a direção da escola e colocou como substituto em Matemática o novato Itagiba d’Ávila Ribeiro, que se tornaria meu grande amigo, além de colega no Euclides da Cunha e no curso de Direito da Universidade Federal Fluminense.  O Dr. Reis transferiu-se para outra cidade; História Natural passou a ser ministrada pelo Dr. Antônio Ferraz Monteiro, o Dr. Lilo, também meu professor de Biologia na Escola Normal, em 1948-49. No mesmo curso Normal, tive aulas de Sociologia com o Prof. Nélson Pesciotta, o único sobrevivente de todos os citados ao longo desta rememoração. Mantenho permanente contato com ele pela internet. Passou dos noventa anos e se mantém em boa atividade. Em 2009, convidou-me para proferir a conferência de instalação da Academia de Letras de Lorena, sua cidade natal. Para lá fui eu, honrosamente acompanhado por uma grande caravana de euclidianos, graças ao empenho de Lúcia Vitto e à adesão de recém-empossado prefeito João Luís Cunha.

É preito de completa justiça destacar o papel de três professores na consolidação de minha carreira no magistério:

 

O Dr. Abdiel Cavalcânti Braga, então diretor da escola, já no ano seguinte ao da minha formatura como professor normalista, contratou-me para dar aulas excedentes de Inglês e de História no curso ginasial do Euclides da Cunha.

No mesmo ano, o Prof. Vinício Rocha dos Santos me convidou a lecionar Português no recém-criado Ginásio Rio-Pardense, da Associação de Ensino, que funcionava no prédio de Paschoal Artese, hoje magnificamente reconstituído, na Praça Barão do Rio Branco. Cheguei a dar aulas fardado, porque fazia o tiro de guerra, em 1951.

Logo depois, eu assumia a mesma disciplina na Escola Normal Municipal, onde fui professor de alunos bem mais velhos do que eu: Sérgio Ribeiro, Mário João, Oswaldo Castaldi.

Nenhum desses mestres, porém, foi mais significativo na minha formação profissional do que o Prof. Hersílio Ângelo, que me fez seu auxiliar de Português em 1951, orientou-me no estudo e me acompanhou nas provas do duro concurso de ingresso no magistério estadual, em 1954. Graças a ele, pude até me hospedar no apartamento de um colega seu, Antônio Henriques Pinto, que morava na Rua Marquês de Itu, a menos de duzentos metros da Praça da República, em São Paulo: todas três provas (escrita, de erudição e didática) foram realizadas no Instituto de Educação Caetano de Campos. O consagrado gramático Mário Pereira de Souza Lima presidiu a banca examinadora.

Minha amizade com o mestre H.A. foi cultivada por muitos e muitos anos, enquanto ele viveu. Enfrentamos juntos as mais graves crises da Faculdade de Filosofia. Hersílio teve um duro fim de vida, preso a uma cadeira de rodas, impossibilitado até de ler e escrever. Ele e sua valente companheira Odette foram padrinhos de batismo de meu filho Marco Antônio.

Uma palavra de louvor e saudade a D. Elza Toledo Leme, a bibliotecária do Euclides, que sabia orientar nossas escolhas de leituras com as precisas palavras de quem havia lido o que vetava e o que indicava. Coisa rara, hoje em dia.

 

04/10/2014
emelauria@uol.com.br

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