Da Arte de Lembrar e de EsquecerNão há motivos para temores: você não terá pela frente um daqueles lamuriosos artigos que falem dos bons tempos idos e vividos. O correto, o otimista, o edificante, neste assunto, é considerar que bons tempos podem ser até os de agora, mesmo que você esteja triste a não mais poder e por isso sinta uma indefinível dor que comece na boca do estômago e responda lá no vazio, uma região indemarcada dos corpos experimentados. Considere apenas o que de bom lhe venha acontecendo e pare com isso de renegar tudo que seja atual, como se fosse inevitável sinônimo de ruim. Pessoas versadas no tema lembranças e esquecimentos dizem que somos aquilo que recordamos e também aquilo que resolvemos esquecer. Fazemos um esforço consciente para descartar da memória coisas desagradáveis. Chegar a isso demanda aprendizado. Quem não consegue passar a antiga e boa borracha em certas situações dolorosas da vida, corre o risco de gastar seu tempo fazendo coisas sem nenhuma valia ou interesse. Mas o cérebro apaga quase tudo que não nos interessa, num processo contínuo de repressão bem-intencionada, provocando reconfortantes amnésias ou até mesmo salutares anistias. Nem parece que amnésia e anistia são parentas próximas no grego, com o sentido geral de perdão, esquecimento... Sem essa capacidade de esquecimento individual ou coletivo, o convívio social seria impossível, porque tanto um jogo de futebol quanto uma reunião de condôminos ou uma corriqueira briga de casal acabariam em desastre. Esquecer é uma arte que se aprende lentamente: as pessoas ficam mais tolerantes quando envelhecem porque aprendem a identificar e selecionar as lembranças que valem a pena. Por isso a maioria dos velhos sabe quão inútil é brigar por qualquer motivo. Assumem, sem saber, uma postura intelectual que Machado de Assis emprestou ao Conselheiro Aires: sentem o tédio da controvérsia. Muitos velhos preferem desenterrar memórias antigas, geralmente episódios da infância e da juventude que correspondem ao tempo da felicidade -- aquele em que eram ágeis, fortes, bonitos, potentes, com toda a vida pela frente... Quer dizer: o velho que se sinta ao menos ágil, potente, com planos para o futuro, na verdade não é velho! Consolador, não? Quem explica isso direitinho é o grande escritor argentino Jorge Luis Borges, cego desde muito moço e nem por isso posto à margem da vida. Experiências de laboratório deitaram por terra crença muito arraigada, a de que os velhos perdem a memória de ocorrências recentes e retêm as mais antigas. O cérebro cria, isto sim, uma memória que dura poucas horas e, paralelamente, outra que pode durar a vida toda. Provou-se mais: a maioria das pessoas alcança os oitenta anos com o intelecto íntegro. A memória só fica mais lenta, mas em compensação muito mais vasta. Então vem a pergunta inevitável: como manter em boa forma a memória? Ainda a resposta tem o testemunho de Borges que, aos oitenta e seis anos, às vésperas de morrer, praticava com intensidade a literatura e o aprendizado de línguas, para provar que memória é função que depende de uso: quanto mais a exercitamos, mais a conservamos. Um dado cientificamente comprovado: o mal de Alzheimer é menos severo em pessoas com nível superior porque elas usaram mais o intelecto. Resolver palavras cruzadas, jogar damas e xadrez e até mesmo baralho estimulam mais o cérebro do que assistir à televisão, especialmente corujando, ou seja, indo de canal em canal, sem um programa específico. Mas não existe nada melhor nem mais eficiente para a memória do que ler atentamente, tentando refletir sobre o texto. É a leitura dita reflexiva que põe em prática a memória das letras, a memória verbal e a memória da imaginação. Até mesmo uma frase simples de poucas palavras estimula a memória. Daí o perigo que correm os preguiçosos, desatentos, os que acham mil desculpas de não enfrentarem nem escritos elementares. É de interesse social que a imensa maioria da população seja estimulada ao uso constante da memória através da leitura. No entanto, no Brasil, a leitura está sendo considerada, cada vez mais, uma excentricidade... Os resultados avassaladores dessa falta de apego à leitura não se têm feito esperar; poucos paises apresentam alunos com tão baixo nível de compreensão textual como o Brasil. Isso é lastimável de mil modos, desde a triste situação de quem nem sabe tomar uma condução, passando pelo operário que não segura o emprego porque não sabe ler instruções elementares, até o estudante universitário que só entende determinado assunto se alguém lê para ele e interpreta o sentido da mensagem. Casos extremos dessa crescente incapacidade de entender o que se lê, recebem o nome de acroase. Os acroatas aparentemente sabem ler, mas sofrem de invencível barreira: nada entendem sem que outra pessoa lhes explique o que acabaram de ler... Isso tudo resumido na terrível frase que o Prof. Hersílio Ângelo oferecia a seus alunos para análise sintática: “Alunos há que estudam, mas não entendem o que leem”... Quem for do ramo que se habilite a esse exercício tão arcaico e excelente para a memória... Discussões têm sido travadas em torno de momentosa questão: crianças familiarizadas com o computador têm mais capacidade de memória? Dizem os especialistas que a intimidade com computadores pode trazer benefícios à retenção de fatos. As crianças têm acesso a um maior volume de informações e fazem muitas atividades ao mesmo tempo. Isso tem um impacto positivo, mas não comprova o que muitos gostariam que passasse a verdade incontestável: que os meninos de hoje sejam mais inteligentes do que seus avós. Além do mais, podem cair nas perigosas armadilhas próprias da abusiva atenção ao micro e à internet: a perda de tempo com assuntos sem nenhuma relevância social ou cultural. Gênios continuam sendo raridade, menos para pais e avós desprovidos de qualquer senso crítico ou de noção do ridículo. E os remédios para a memória? Dizem os especialistas que pouco ou nada funcionam. As pesquisas científicas estão mais à procura de uma pílula da memória, que teria por primeira finalidade encontrar respostas aos sintomas do mal de Alzheimer. Tudo se encontra ainda numa fase pouco produtiva. Quem sabe a solução esteja na manipulação de genes para impedir a manifestação de doenças degenerativas do cérebro? Enquanto esses avanços futuros não chegam à realidade cotidiana, a melhor prevenção para a perda de memória é, mesmo, a boa e velha leitura. Não tenho queixas de minha memória; ao contrário, considero-a boa porque tenho nítidas recordações da mais tenra infância, da meninice, da juventude, da maturidade, da velhice, tanto que levo muito a sério a sutil observação do grande escritor alemão Hermann Hesse: “Por vezes, o que as pessoas mais desejam é exatamente esquecer!” Poucas coisas haverá mais tristes do que a perda da memória ou o uso errôneo dos processos mnemônicos – aqueles criados para facilitar a retenção de nomes, datas, fatos. Uma falecida colega de magistério, daquelas falantes, engraçadas, lembrava com ironia a história (quem sabe verídica) do sujeito que se gabava de sua capacidade de reter dados, a partir de engenhosas associações. Quando apresentado a uma distinta senhora, por nome dona Herda, sabe-se bem que associação ele criou para não o esquecer tão cedo. Tanto que, tempos depois ao rever dona Herda, apressou-se a cumprimentá-la cordialmente, dizendo: - Como vai a senhora, dona Hosta? Situações estressantes podem ocasionar momentâneos e comprometedores lapsos de memória, como foi o caso do experimentado orador dirigindo-se a grande plateia: - Há meia hora, juro-lhes que eu e Deus sabíamos o que eu iria lhes dizer esta noite.. . Agora, só Deus sabe!
04/07/2009
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