Na antevéspera
Não há como evitar: ao pretexto mais incoerente, lá vai o pensamento remoer a grande decisão, como se a paz, a felicidade, o futuro, as vidas de milhões de brasileiros estivessem diretamente ligados aos resultados de mero jogo de futebol. Mero é modo de prosa. É um Brasil contra a Argentina, é um ainda meio provinciano Corinthians não só contra o papão Boca Juniors, é ainda um Corinthians contra a maior torcida do Brasil – a anticorinthiana. E haja secadores vascaínos, santistas, são-paulinos, palestrinos! José Simão resume tudo com uma ponta de maldade: é o jogo do Boca contra o Meia-Boca!
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O fio de esperança reacendeu-se quando Cássio, um novato goleiro comprido, desajeitado e com aparelhos nos dentes, defendeu com a ponta do último dedo um chute vascaíno e garantiu o Corinthians na semifinal contra o Santos.
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Aí foi a vitória temerosa na Vila Belmiro e o empate angustiante no Pacaembu. De repente, não mais que de repente, estava-se na final da Libertadores, contra o seis vezes campeão Boca Juniors. Das seis conquistas, quatro conseguidas no campo do adversário. E que risco jogar em Buenos Aires, na Bombonera, um alçapão construído para que o visitante sinta a torcida fanática do Boca gritando dentro do próprio campo.
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Quando já se dava como inevitável a honrosa derrota por pouco, entra em campo um desses iluminados que o futebol produz lá de vez em quando: um sujeitinho franzino, na flor dos vinte e um anos, toca na bola aos trinta e sete minutos do segundo tempo e, como se fosse um veterano em artimanhas, chuta de cavadinha, encobre o goleirão e empata a partida. Silêncio de milhares de espantados, de pasmados, de decepcionados. Silêncio de Riquelme no campo e de Maradona, meio escondido lá na tribuna de honra . Um empate com forte sabor de vitória corinthiana. O resto ficou para o Pacaembu, quarta-feira, 4 de julho, à noite. Quem tiver sobrevivido terá visto.
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Verdade seja dita: essa Eurocopa também andou mexendo com os nervos, porque não soubemos comportar-nos como neutros e imparciais espectadores. Um belo torneio essa espécie de Copa do Mundo sem o Brasil e a Argentina.
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Tomar partido, sempre tomar partido. De começo, o dos fracos contra os fortes, os oprimidos contra os opressores. Num Polônia e Rússia, como não torcer pela Polônia, ainda que não se conhecesse a milenar tragédia que, para o pequeno, significa a vizinhança do grande? Como não cair de amores pela brava Ucrânia, por tanto tempo reduzida a pouco mais do que uma espécie de província da União Soviética? Como não abraçar a causa da falida Grécia em seu desigual confronto com a poderosa Alemanha? Como não dar valor ao ingente esforço de Polônia e Ucrânia, países que organizaram espetáculos visuais de encantar o mundo, que fizeram todas as partidas começar britanicamente no horário?
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E assim foi, até o afunilamento e as grandes decisões. Portugal e Espanha? Claro que Portugal, quando menos porque a história de nossos povos foi a mesma durante mais de três séculos. Além disso, a língua que nos une. E Cristiano Ronaldo, esse portuguesinho inteligente, atrevido, exibicionista, sempre de olho no telão, com seus momentos de grande astro da bola? Seleção portuguesa: um só craque e outros dez medíocres esforçados contra a terrível combinação dos geniais do Barcelona e Real Madrid, ainda bem que sem o desequilibrador Messi. Puxa, que resistência do Davi contra Golias – para tudo acabar na loteria de pênaltis mal cobrados.
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Itália e Alemanha? Claro que Itália, que a voz do sangue fala nas profundezas do coração. Ainda mais com Balotelli, herói dos oprimidos e desassistidos, sua cabeçada fulminante, seu chute atroador e sua história de superações – um negro italiano. Nem imagino como reagiria meu avô César Bertocco a essa agitação toda.
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Itália e Espanha? Claro que Itália, por mil e duas razões, que acabaram valendo nada. Só a Espanha pôde jogar, impondo seu modo fascista de tratar o adversário, como a aranha que amarra a vítima em suas teias e depois a exaure, desidrata. Ou como os índios do velho Oeste que cercam os defensores do forte e os vão abatendo um a um, sem pressa, com científica metodologia. Seleção espanhola: a Fúria sem fúria.
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Sei não se até a Copa de 2014 o Brasil terá conseguido armar um time capaz de jogar de igual para igual contra a Espanha. Para a Copa das Confederações, já no ano que vem, duvido muito. Mano Meneses que ponha sua ruiva barba de molho. Sua cabeça pode até rolar.
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Houve, já faz muito tempo, um jogadorzinho feito no Corinthians, chamado Silva. Emprestado ao Juventus, numa partida memorável marcou gol de bicicleta contra o próprio Corinthians. Muito se falou dele, muito se profetizou sobre seu brilhante futuro. Nada aconteceu. Aquele gol foi um relâmpago no céu sem brilho de mais um Silva. Será assim com o Romarinho, que ainda por cima carrega nome de tantas e definitivas lembranças?
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Balotelli, Balotelli, objeto de tanto preconceito. Inesquecível a sua cara de estátua de ébano, depois do primeiro gol contra a Alemanha, aquele com uma cabeçada a cem por hora. Inevitável seu desabafo narcisista no segundo, aquele tirombaço indefensável de fora da área. Precisou tirar a camisa, mostrar ao mundo o belo físico de africano sadio, levar orgulhosamente o cartão amarelo da insubordinação. Triste, mesmo, sua desolação depois dos quatro a zero dos espanhóis que nem precisaram suar a camisa. E ele havia prometido marcar quatro gols.
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Até aqui, o que escrevi na segunda-feira, 2 de julho de 2012. Daqui em diante, página vazia, à espera do que terá acontecido no Pacaembu, a 4 de julho, entre dez e meia-noite.
04/07/2012
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