O poeta universal
Prestei minha homenagem a Mário Quintana, poeta gaúcho que faz poesia parecer algo muito simples, de nenhum esforço: adquiri Poesia completa, por então nada desprezíveis cento e noventa reais, isso em 2006. Hoje deve valer bem mais que o dobro. São mil páginas organizadas, preparadas, prefaciadas e anotadas por Tânia Franco Carvalhal. (Como as mulheres se vêm destacando nos estudos literários e linguísticos!) Lá estão todos os seus livros em versos, desde A rua dos cataventos (1940) até Velório sem defunto (1990), além da fortuna crítica a cargo de Augusto Meyer, Guilhermino César, Paulo Rónai, Gustavo Corção e Paulo Mendes Campos, nomes de peso da cultura brasileira. Porto Alegre com uma escultura que reúne Quintana (sentado) e Carlos Drummond de Andrade (em pé), na Praça da Alfândega, pereniza em bronze o grande poeta, que não tem apenas valor regional. Sua poesia não é localista, nem mesmo nacional. Tende mais ao universal, porque fala a todos e expressa a condição humana, explorando a reflexão sobre a vida e sobre a morte. A maior e mais concreta homenagem que Mário Quintana recebeu em vida não foi de nenhuma academia, de nenhum crítico de renome. Foi de um admirador sincero, Falcão, o elegante jogador de futebol que mereceu em outros tempos o belo título de rei da Roma: Quintana, solteirão, morava num hotel de Porto Alegre. Com a passagem do tempo, seus recursos financeiros minguaram a ponto de ele já não ter como pagar a hospedagem. Então o elegante Falcão, hoje técnico de futebol e/ou comentarista de televisão, não teve dúvida: combinou com os proprietários do Hotel Majestic que se encarregaria de todo o pagamento. E assim, o poeta pôde viver sossegado ali, entre 1968 e 1980. Leio que o prédio do antigo Majestic abriga a Casa de Cultura Mário Quintana – o que não é pouco num país tão desleixado de seus melhores valores morais e intelectuais. Vale a pena ter, ao menos, a Antologia poética de Mário Quintana, preparada por Rubem Braga e Paulo Mendes Campos e lançada pela sempre lembrada Editora Sabiá, em 1966, que acabou dando ao poeta o reconhecimento nacional.
Um pouco de Mário Quintana: l Um engano em bronze é um engano eterno. l Bem-aventurados os pintores escorrendo luz que se expressam em verde, azul, ocre, cinza, zarcão! Bem-aventurados os músicos. E os bailarinos e os mímicos e os matemáticos. Cada qual na sua expressão. Só o poeta é que tem de lidar com a ingrata linguagem alheia. A impura linguagem dos homens. l Há um grande silêncio que está sempre à escuta. l Quando o silêncio a dois se torna incômodo. l Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página. Por isso a palavra escrita é sempre triste. l Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida? Que outro lábio canta, com minha voz perdida, nossa eterna primeira canção? l As histórias de crimes que vovó Ágata contava para nosso horror, no mundo inacreditável de hoje viraram histórias de fadas. l Autodidata: ignorante por conta própria. l O segredo da arte – e o segredo da vida – é seguir o seu próprio nariz. l Há mortos que não sabem que estão mortos. l Infância – tecnicólor; velhice – a vida em preto-e-branco. l Planto com emoção este verso em teu coração. l Ele fugiu de casa... Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade... Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância! l Nem tudo estará perdido enquanto nossos lábios não esquecerem teu nome. l Poesia não é a gente tentar em vão trepar pelas paredes, como se vê em tanto louco por aí: poesia é trepar mesmo pelas paredes. l A vida é tão bela que chega a dar medo. l No céu, os anjos do Senhor leem poemas às escondidas. São suas leituras pornográficas. l O que mais me comove, em música, são essas notas soltas – pobres notas únicas – que do teclado arranca o afinador de pianos... l Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página: por isso a palavra escrita é sempre triste. l Não leia romances, leia poesias. Ou melhor, leia dicionários. l Ninguém ouve um discurso por muito tempo: começa-se a pensar em outras coisas. l - Mas há as pessoas que nos compreendem... - Ah, essas são as piores! l No peitoril de todas as janelas há uma flor convalescente. l Quem nunca se contradiz deve estar mentindo. l Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. l Uma das mais deliciosas manifestações de amor é a falta de respeito. l Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito e o mistério da vida...
04/06/2016 |